» André Gustavo Stumpf, Jornalista.
O realismo mágico, ou seja, ocorrências disparatadas e sem qualquer lógica, infesta a política na América Latina. Todas têm um fundo de verdade baseado na corrupção ou no interesse pessoal. Ou na simples loucura. No caso brasileiro, houve um presidente muito chegado a uísque escocês que acordou um dia e, sem conversar com ninguém, resolveu renunciar a seu cargo. Arrumou sua mala, viajou para São Paulo e ficou esperando pela revolta popular, que o reconduziria ao poder com mais força e capacidade para promover legislação sem passar pelo Congresso. O povo não se comoveu. O resultado é que ele embarcou para o exílio num navio cargueiro inglês e passou o resto da vida tentando explicar o que o levou ao gesto extremo da renúncia.
Já houve presidente da República que se suicidou com um tiro no peito. Getúlio Vargas saiu da vida para entrar na história, segundo sua carta testamento. Provocou uma violenta comoção popular. Nos nossos vizinhos, acontecem situações inexplicáveis. O cadáver de Eva Perón perambulou pelo mundo antes de ser enterrado em Buenos Aires, anos depois de sua morte. Um funcionário do governo chegou a guardar o corpo em casa. Perón foi enterrado num mausoléu imponente que, tempos depois, foi vandalizado. Levaram as mãos do benefactor, possivelmente para abrir com as impressões digitais um cofre em algum banco na Suíça. As mãos do antigo homem forte da Argentina nunca foram encontradas. Essas histórias constam do livro que Ariel Palacios acaba de lançar, chamado América Latina, lado B (editora Globolivros).
O Brasil está entrando nessa narrativa não apenas por seus políticos, que escondem expressivos volumes de dinheiros em apartamento, mas por via judicial. Como todo o país sabe, e os advogados mais do que ninguém, o cidadão Luiz Inácio Lula da Silva foi condenado à prisão por decisão da 13ª vara de Curitiba, que foi carimbada e legitimada pelo Tribunal Regional Federal e, depois, pelo STJ. Certo dia, um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que estava tudo errado, porque os crimes que envolviam o acusado não poderiam ter sido julgados em Curitiba. Não era o local para apreciar aquele tipo de processo. Uma questão formal e processual. Com base nisso, ele anulou todos os atos e determinou que a Justiça em Brasília retomasse o caso desde seu início. O Judiciário brasiliense rapidamente arquivou o processo. Lula foi solto e retornou à Presidência da República.
Semana passada, em um único dia, o STF cancelou as condenações de Marcelo Odebrecht e José Dirceu por corrupção e ainda arquivou um inquérito que estava há anos sem conclusão contra Romero Jucá (MDB-RR) e Renan Calheiros (MDB-AL). Em outro ponto da cidade, o Tribunal Superior Eleitoral livrou, por unanimidade, o juiz Sergio Moro de ter seu mandato de senador cassado. Aqueles que estavam esfregando as mãos para concorrer ao Senado em eleição única no Paraná perderam a oportunidade e devem ter aprendido a lição de que o jogo só termina quando acaba. Tinha gente que já estava se comportando como se fora senador ou senadora daquele estado.
O ministro Dias Toffoli já havia anulado as provas do acordo de leniência da Odebrecht e suspendido o pagamento das multas da J&F, empreiteira que nada tinha a ver com a Lava-Jato. O ministro aceitou os argumentos de que as confissões ao Ministério Público Federal foram obtidas sob coação, nova versão de tortura psicológica para obter provas contra inocentes. No entanto, nenhum dos acusados protestou contra a eventual prática de tortura, sob qualquer forma, nas prisões da Polícia Federal.
Ao contrário, o empresário Emílio Odebrecht visitou o presidente Lula no Palácio do Planalto para comunicar que a reforma do sítio de Atibaia (SP) seria entregue no prazo prometido. Marcelo Odebrecht qualificou o ministro Toffoli de amigo do amigo de meu pai. Aliás, a Odebrecht, com seu novo nome, acaba de vencer a licitação da Petrobras para realizar as obras que deverão concluir a construção da refinaria de Abreu e Lima, em Pernambuco. Seu custo está várias vezes maior do que o previsto inicialmente. E o parceiro venezuelano não colocou um centavo na obra.
Faz oito anos que o então senador Romero Jucá disse que era preciso haver "um grande acordo nacional com Supremo e tudo para estancar a sangria provocada pelas investigações de corrupção". Ou seja, no quesito corrupção e interpretações jurídicas heterodoxas, ou do realismo mágico, o Brasil honra seu lugar na lista de países onde tudo é fluido, nada é permanente. Nem o seu passado. Aliás, desde o tempo em que o território nacional era colônia de Portugal se dizia que não há pecado ao sul do Equador.