"Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura … se é verdade
Tanto horror perante os céus…
Ó mar! Por que não apagas
com a esponja de tuas vagas
de teu manto este borrão?...
Astros! Noites! Tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!..."
(Castro Alves, O Navio negreiro)
Em casos de enchentes como essa de 2024 no Rio Grande do Sul, faço reflexão. Os descendentes de meus ancestrais para cá trazidos à força pelo tráfico da Inglaterra, de Portugal e do Brasil devem ser indenizados por esses países.
Nasci em Porto Alegre, no ano de 1948, na colônia africana do Bom Fim. O dardejar da especulação imobiliária jogou meus pais para o bairro Bom Jesus, ao pé do Morro Santana. Mais tarde, fomos residir no Morro do Menino Deus, bairro cantado em versos por Caetano Veloso.
Hoje, o Brasil e o mundo se voltam para a tragédia que sofremos. O hino do estado tem versos que geram justa polêmica: "Povo que não tem virtudes acaba por ser escravo". Como assim? Escravizado? Seu sangue e seu suor inundaram este chão do Brasil com seu trabalho especializado, será que não tinha nenhuma virtude?
Imagens, relatos e notícias do caos da enchente mostram-nos que 85% das periferias dos municípios gaúchos são de olhos pretos dos negros. Semblante, olhar e fisionomia enrugada na testa. No rosto, nariz chato ofegante e cabelos encaracolados ou crespos. Sequer lindos dentes alvos são mostrados. Lágrimas quentes correm não para o mar, e, sim, na pele negra até o peito dolorido, e só.
Como psicanalista, recolho lição de Sigmund Freud sobre angústia: "É algo sentido pelo estado afetivo. Presente ausência de afeto. Desconforto compreensível em face a reação ao perigo. Perdas - materiais e espirituais ".
Negros que habitam o estado campeão no preconceito, segregação e racismo resistem sempre. O Grupo Palmares nasceu aqui justamente no mês de maio de 1971, há 53 anos. E por que mesmo? Voltando à psicanálise, esta dá conta do sentimento, do desejo que mergulha não na enchente, mas na ansiedade. O ego inclina-se por sua fragilidade diante da catexe, que é o dispêndio de energia mental ou emocional numa pessoa, objeto ou ideia. O superego dá de ombros, pois não é com ele. O medo existe para os não negros.
Já os oriundos do continente africano vestem corpos dos lanceiros negros, que sequer tinham medo de baionetas e canhões. Preservação instintiva na ânsia da liberdade prometida, mas, ao fim, traída. O exército da solidariedade ensina aos então orgulhosos separatistas que o amor é o solvente do mundo. Que essas façanhas sirvam de modelo a toda a terra.
A pandemia fez brilhar no painel da vida a luz amarela, mas parece que não aprendemos nada. Veio a enchente, e o voluntariado — que está a fazer mais que todos os governos — tem no cavalo Caramelo o seu símbolo preferido da resiliência.
Os demais estados brasileiros precisam aprender com nossos erros. O incêndio da Boate Kiss até hoje causa trauma nos familiares e amigos das vítimas. E também constatamos que leis de proteção ambiental foram flexibilizadas. Gestões municipais e estaduais não investiram como deveriam na prevenção. Isso é fato.
Não são os rios que invadiram as cidades, foram elas que ocuparam os espaços deles. Temos um lago em que passa um rio no meio. Os R$ 90 bilhões da dívida do estado é o montante que vamos precisar para reconstruir a terra de Sepé, João Cândido e Paixão Côrtes. Se no entorno não construirmos vários parques que funcionem como esponjas, vamos sofrer tudo isso novamente. As mudanças na dinâmica das temperaturas no planeta assim indicam.
Povos originários ou indígenas, como queiram, junto aos negros são os primeiros a sofrer e os últimos a tentar conseguir superação. O Brasil e as Américas não foram descobertos, como diz a história oficial. Foram, sim, invadidos por outros povos que aqui chegando escravizaram os povos originários e, não satisfeitos, foram em busca dos negros como mão de obra escravizada.
A abolição da escravização indígena deu-se no ano de 1.680, e a dos negros, em 1888. Mas o tempo, implacável anotador da história, comprova, em situação de calamidade, que a tortura continua. O grito do índio Sepé ecoa por todo o Rio Grande: "Esta terra tem dono". Aduzo, não destruam o presente que Deus nos deu.
*ANTÔNIO CARLOS CORTES, Advogado, psicanalistas, membro da Academia Rio-grandense de Letras