MARCELO COUTINHO*
A catástrofe no Rio Grande do Sul acendeu definitivamente o alerta na população brasileira quanto aos graves problemas decorrentes das mudanças climáticas. Um estado quase inteiro submerso por muitos dias, após duas outras grandes enchentes nos últimos oito meses. Emissões históricas de carbono e desmatamento recorde do Cerrado no último ano e meio fizeram com que uma bomba climática estourasse sobre a cabeça dos gaúchos. Cenas fortes e muito tristes que devem fazer com que o governo e o Congresso Nacional saiam do seu imobilismo irresponsável. O estado no extremo sul do país é apenas o primeiro a correr sério risco de "desaparecimento".
Que ninguém se engane, o problema é mesmo muito sério e só está começando a gerar os seus efeitos terríveis. Outros estados logo passarão por situações climáticas ainda mais duras do que as que enfrentaram até aqui. Já estamos muito próximos do ponto sem retorno, isto é, o limite de desfazimento do meio ambiente e do clima depois da qual não é mais possível reverter uma espiral atômica de destruição em cadeia. A irresponsabilidade foi longe demais. Exemplo: mesmo depois de duas cheias entre setembro e novembro de 2023 no Rio Grande, a bancada parlamentar gaúcha liderou na Câmara dos Deputados, em dezembro, a renovação dos subsídios ao carvão até 2040. No mesmo dia, com a colaboração do Governo Federal e da Presidência da Câmara, tiraram os subsídios ao hidrogênio verde, a principal solução hoje para a descarbonização de muitos setores econômicos.
É hora de responsabilizar os irresponsáveis, pois custam vidas. Nenhuma ação verdadeira e consistente contra as catástrofes climáticas pode deixar de fora a transição energética e o fim do desmatamento. Quem defende o etanol, os combustíveis fósseis e a flexibilização das leis de proteção ambiental é culpado por cada corpo de bebê que emerge nas águas do Guaíba. O cinismo das nossas autoridades não passa despercebido. Ninguém cai mais nas encenações de figuras públicas que possam ficar preocupadas um dia, enquanto noutro comemoram aumento da produção de petróleo, gás natural, carvão e etanol. Todas essas energias emitem muito carbono. O etanol é até mais nocivo porque também desmata.
O agronegócio brasileiro é, hoje, o maior emissor de carbono do Brasil, sobretudo pela mudança no uso da terra. O agro precisa entender que não tem os mesmos interesses dentro dele próprio. Os plantadores de soja, arroz e feijão não têm o mesmo interesse que os plantadores de milho e cana de açúcar, voltados para a produção do etanol. A terra deve ser usada para alimentos, e não para gerar energia, porque não tem terra suficiente para tudo e porque as fazendas de biocombustíveis degradam mais o meio ambiente do que resolvem o problema das emissões de carbono. Os pés de cana e milho avançam sobre outras culturas alimentícias e a pecuária, e avançam sobre as matas naturais. Tanta mudança de terra é justamente o vilão das emissões brasileiras. O avanço da fronteira agrícola está por trás dos desmatamentos e das queimadas, que bateram novo recorde entre janeiro e abril de 2024, depois de baterem recorde no ano passado.
Além de colocar um fim ao aumento da produção do etanol, seja acabando com os subsídios desse setor, seja proibindo novas áreas com esse propósito, é preciso responsabilizar as grandes empresas emissoras de carbono, a começar pelas petroleiras, de longe as maiores vilãs mundiais do aquecimento do planeta. Uma taxa para catástrofes é uma forma de fazer isso. Outra medida é a definição de um prazo para acabar com a venda de veículos a gasolina e a diesel no Brasil, como acontece em todo o mundo desenvolvido e na China. E finalmente, o Congresso precisa aprovar já o marco legal do hidrogênio verde (H2V) e das eólicas offshore, com todos os incentivos, como o resto do mundo vem fazendo. Chega de hipocrisia, de mentiras e de se esconderem. O Brasil será o maior beneficiado pela transição energética e será o mais prejudicado com a falta dela, incluindo a perda de safras.
Frente aos apagões seriais, o discurso fake de segurança energética promovida pela turma dos fósseis é o maior engodo que já se viu. As térmicas a carvão e gás natural precisam ser substituídas pelo H2V. O aço precisa ser verde, com o H2V. Os veículos pesados precisam ser movidos a H2V, puro ou derivado. Os fertilizantes precisam ser com amônia verde, com H2V. O cimento, o alumínio e assim por diante, tudo precisa ser com hidrogênio verde, que o Brasil pode ter em abundância. Se demorarmos mais, será preciso recuar bastante as cidades das beiras d'água. O que não dá é para ficar com apenas as mitigações, que são paliativas. A boa notícia é que podemos consertar as coisas. Mais de 30% da energia elétrica mundial já provém de fontes renováveis, e ano que vem pode chegar a 40%. A era das renováveis inorgânicas já começou. As fontes de energia limpas já diminuíram o crescimento dos combustíveis fósseis em quase 2/3 nos últimos 10 anos. No caso brasileiro, o problema não é principalmente a energia elétrica, mas o agro e o transporte. É possível mudar quando se quer mudar. Ou será o fim.
*Professor da UFRJ, especialista em mudanças climáticas e indústrias renováveis