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Uma árvore a menos, uma doença a mais

É imperativo que a sociedade brasileira e nossos gestores públicos encarem o desmatamento como uma afronta direta à saúde e ao bem-estar da população

Deslizamento por causa de chuvas no litoral norte de São Paulo -  (crédito: Fernando Marron/ AFP)
Deslizamento por causa de chuvas no litoral norte de São Paulo - (crédito: Fernando Marron/ AFP)

As contínuas agressões ao meio ambiente tornaram-se manchetes frequentes. Relatos sobre o desmatamento de diversos biomas, como o Cerrado, aparecem a todo tempo nos meios de comunicação. Contudo, as reações e os protestos nas metrópoles do país parecem não refletir a magnitude desse problema. Muitos podem sentir que o problema "ocorre longe de mim" ou que suas repercussões serão sentidas apenas por futuras gerações. Há ainda quem defenda a degradação ambiental em nome do desenvolvimento econômico. Minoria, é verdade, mas há.

Essa perspectiva é curta e potencialmente perigosa. As consequências ambientais já afetam todos, independentemente de onde vivemos, e estão comprometendo nosso bem mais valioso: a saúde. Um estudo publicado no periódico norte-americano Inflammatory Bowel Diseases, em 2022, conduzido pelo nosso grupo, mostrou que, no Brasil, áreas de intenso desmatamento têm mais casos de doenças inflamatórias intestinais (DIIs). Isso pode estar ligado à perda de biodiversidade, afetando a diversidade da microbiota intestinal, um fator-chave nas DIIs. Diversos estudos têm demonstrado a estreita relação entre o desmatamento e a emergência de várias doenças em seres humanos. 

Fernanda Ribeiro, pesquisadora do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), destaca que o desmatamento crescente do Cerrado e da Mata Atlântica cria condições propícias para a propagação do carrapato-estrela, transmissor da febre maculosa. Essa doença tem uma alarmante taxa de letalidade: de 80%.

Em 2015, o Brasil assistiu, em estado de choque, ao rompimento da barragem do Fundão, da mineradora Samarco, na região de Mariana (MG). Um desastre ecológico sem precedentes. Na ocasião, houve a morte de incontáveis peixes e anfíbios, principais predadores de mosquitos — entre eles, os transmissores da febre amarela. Cerca de dois anos depois, a conta chegou, e Minas Gerais vivenciou um grande surto da doença.

 O infectologista Gilberto Nogueira, do Hospital DF Star, afirma que é clara a associação entre o desmatamento e o avanço de doenças, como malária, leishmaniose, dengue, zika e chikungunya. "A relação que se faz é que os mamíferos silvestres dessas regiões migram ou morrem, deixando os mosquitos sem suas fontes alimentares naturais", informa o especialista.

O desmatamento não poupa nem mesmo nossas crianças. Em 2016, um estudo da Universidade de Brasília, em associação com o UniCeub e publicado na Revista Brasileira de Políticas Públicas, revelou que o número de atendimentos pediátricos por problemas respiratórios aumentou significativamente em municípios, como Alta Floresta e Peixoto de Azevedo, situados no norte do Mato Grosso, região que sofre com as queimadas devastadoras da Floresta Amazônica.

Atualmente, o Brasil enfrenta devastadoras enchentes no Rio Grande do Sul, uma tragédia intimamente relacionada às contínuas agressões ao meio ambiente. Infelizmente, o sofrimento do povo gaúcho tende a se agravar pela disseminação de algumas doenças, como a leptospirose, que é transmitida pela urina de ratos infectados. As enchentes facilitam a disseminação da leptospirose pela água contaminada, aumentando o risco de infecção entre a população. 

Em resposta a essa ameaça, a Secretaria Estadual da Saúde do estado emitiu recomendações para a quimioprofilaxia, com avaliação médica, contra a leptospirose para indivíduos expostos à água da enchente por períodos prolongados, incluindo socorristas e voluntários. Além disso, a chegada do inverno e a aglomeração nas áreas de acolhimento destinadas às pessoas desabrigadas devem resultar em um aumento nas taxas de infecções respiratórias, representando mais um desafio para a saúde pública.

Se quisermos um Brasil sustentável e saudável, a mudança precisa começar agora. O fortalecimento e a aplicação rigorosa de nossas leis ambientais são passos iniciais vitais. A economia e a ecologia podem andar de mãos dadas, e isso se torna possível ao investirmos em práticas agrícolas sustentáveis e tecnologias verdes. A conscientização pública sobre os riscos à saúde oriundos da degradação ambiental é uma obrigação e, para isso, campanhas informativas devem ser priorizadas. E, nesse cenário global, formar alianças internacionais é estratégico, pois unindo forças, podemos construir um Brasil que avança economicamente sem sacrificar seu patrimônio ecológico.

Face ao quadro desenhado, reforço que é imperativo que a sociedade brasileira e nossos gestores públicos encarem o desmatamento não apenas como um ataque à natureza, mas como uma afronta direta à saúde e ao bem-estar da população. Essa é uma crise que vai além das fronteiras das florestas e penetra os corações de nossas cidades e nossos lares. Portanto, ao discutirmos políticas de preservação ambiental, não estamos meramente debatendo a proteção da biodiversidade, mas defendendo o direito fundamental de cada cidadão à saúde e à qualidade de vida. Ignorar essa realidade é negligenciar o futuro do Brasil e comprometer nossa posição no cenário global como líderes responsáveis e conscientes.

*LUIZ FELIPE DE CAMPOS-LOBATO, Cirurgião coloproctologista, professor adjunto de cirurgia da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília (UnB)

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postado em 23/05/2024 06:00
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