Em 1961, o serviço secreto de Israel descobriu a presença de Adolf Eichmann em Buenos Aires, escondido por dezenas de nazistas argentinos. Era a chance de vingar o assassinato de 6 milhões de judeus sob a coordenação daquele monstro. Em vez de bombardear o bairro onde ele morava para assassiná-lo, o primeiro-ministro Ben-Gurion optou por capturá-lo, tirá-lo da Argentina, fazer julgamento público, condená-lo à morte e enforcá-lo na madrugada de 1° de junho de 1962. Foi um grande risco, poderia não ter dado certo, mas Israel saiu fortalecido moralmente, suas forças de defesa e seus serviços de informação mais respeitados, o sionismo cresceu e o antissemitismo diminuiu.
Mais de seis décadas depois, terroristas palestinos assassinaram e sequestraram brutalmente 1,5 mil israelenses. Sob o pretexto de eliminar os terroristas que se escondiam entre civis, o primeiro-ministro Netanyahu promoveu a destruição de Gaza, o assassinato de dezenas de milhares de homens, mulheres e crianças e a transformação das cidades em guetos com 2 milhões de sobreviventes. Aproveitou a justa ira do povo israelense para esconder as falhas de seu governo na segurança das fronteiras de seu país, driblar acusações de corrupção contra ele, anular o Poder Judiciário, silenciar a oposição, calar a imprensa e unificar em torno de si não apenas israelenses, mas quase toda comunidade judaica do mundo.
Em 1961, Israel cresceu, agora, se enfraquece moralmente e oferece argumentos para antissemitas. Ao deixar-se identificar com o nome de Netanyahu, no lugar da identificação histórica com Jesus, Espinoza, Marx, Freud, Einstein, Sachs, Morin, os judeus do mundo insuflam antissemitismo, tanto quanto os alemães provocaram ondas antigermânicas ao se identificarem com Hitler, no lugar de Kant, Goethe, Hegel, Beethoven. Ainda mais grave, porque os alemães não tinham conhecimento de todos os horrores de seu tempo, e os judeus de hoje sabem o que está acontecendo em Gaza. A Nakba — catástrofe da expulsão de palestinos em 1948 — era tratada como o preço para dar o porto seguro ao povo que há milênios sofria perseguição por antissemitas, agora é levada como genocídio à Corte Internacional de Justiça.
Os radicais se matam por uma mesma causa: destruir os sonhos dos moderados. Os mortos e a destruição em Gaza são as vítimas visíveis e imediatas da aliança entre o governo Netanyahu e os terroristas do Hamas, cada um buscando a "solução final" contra o outro: o primeiro querendo expulsar e subjugar os palestinos, os outros querendo anular a existência e expulsar os israelenses. Essa aliança maldita mostra que, no lugar da força moral e política de seus fundadores, Israel terá de usar cada vez mais armas de destruição em massa e implantar apartheid; precisará de uma Nakba permanente, que não se manterá para sempre, porque perdeu a guerra moral e toda derrota moral leva à derrota política.
Uma vítima invisível e de longo prazo será o desgaste da empatia mundial por Israel e o crescimento do antissemitismo. No dia 7 de outubro de 2023, o mundo acordou ainda mais solidário com Israel, mas o apoio se esvaneceu diante da brutalidade cometida por suas forças armadas contra o povo palestino e da incompetência desse poder militar para derrotar o terrorismo. A solidariedade com as vítimas israelenses se transformou em manifestações de simpatia por Gaza ao redor do mundo, nas ruas e nas universidades.
Os humanistas sabem da contribuição de judeus ao pensamento mundial, sentem solidariedade pelo que eles sofreram ao longo de milênios, especialmente no holocausto do século 20, admiram a construção de Israel por líderes socialistas que priorizaram educação, ciência e tecnologia, por isso, têm a obrigação de lutar contra o antissemitismo que cresce por causa da desumanidade em Gaza.
O humanismo é incompatível com o terrorismo e com o antissemitismo. Apoiar a luta contra o terror e barrar o antissemitismo é tarefa de todo humanista, daí a obrigação de respeitar a história milenar dos judeus e denunciar os crimes do atual governo de Israel. Para tanto, os humanistas, inclusive judeus, precisam defender o uso da inteligência e da força de Israel para vencer ameaças terroristas, mas sem conivência com a "solução final" de expulsar e matar os palestinos, nem com a incompetência dessa força, se o seu propósito não for o genocídio. Precisam se distanciar da estratégia que, ao mesmo tempo, vitimiza o povo palestino, impõe um holocausto à alma judaica e, em consequência, insufla o antissemitismo.
*CRISTOVAM BUARQUE, Professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)
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