DENNIS DE OLIVEIRA*
O golpe militar de 1964 completou 60 anos. Instituiu uma ditadura por 21 anos, só encerrada com a transição de acordos que culminarm com a eleição de Tancredo Neves por via indireta em 1985. A Constituição promulgada em 1988 legitimou de vez o arranjo institucional democrático que vigora até hoje.
Entre o fim de 2022 e início de 2023, o Brasil viveu na iminência de um novo golpe de Estado com a ação de grupos defensores do ex-presidente Jair Bolsonaro que tentaram derrubar o governo recém-eleito. As instituições agiram e estão agindo para punir os que tentaram esta aventura.
Esses dois fatos relatados são a base para um momento em que a "defesa da democracia" como um valor universal no Brasil ganhe corpo no debate público contemporâneo. Ampliando um pouco mais, observa-se que há um nítido crescimento de forças autoritárias em todo o mundo — partidos de inspiração nazifascista ganhando eleições em nações europeias (e até na vizinha Argentina), medidas autoritárias sendo aprovadas em Parlamentos etc.
O que falta refletir em um país como o Brasil é se uma defesa abstrata da democracia é suficiente. Isso porque o que se observa é que essas ideias extremistas têm apoio em parcelas significativas da sociedade. E é um erro considerar que tal apoio decorre unicamente de "ignorância", "disseminação de fake news" ou "ausência de uma consciência democrática". A pergunta é: até que ponto esta "democracia" tem um significado substantivo na vida das pessoas?
Segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil tem 45,3% da sua população autodeclarada como "parda"; 43,5% como brancos, 10,4% pretos, 0,8% indígenas e 0,4% amarelos. A Câmara dos Deputados – cuja composição dá-se por eleição proporcional – tem entre seus membros 72% de brancos, 20,8% de pardos, 5,2% de pretos, 0,9% de indígenas e 0,6% de amarelos. O Supremo Tribunal Federal não tem nenhum ministro negro. Isso apesar de, segundo o TSE, nas eleições de 2022, o número de candidaturas pretas e pardas ter sido aproximadamente 47%.
Por outro lado, as estatísticas mudam quando se trata da população encarcerada. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2022, 68% da população carcerária no Brasil era composta por negros (pretos e pardos) contra 30,4% de brancos. O Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec) aponta que 65% dos mortos pela polícia em 2022 eram pessoas negras. A Polícia Militar da Bahia, estado com o maior percentual de pessoas negras, foi a que mais matou civis em 2022: 1.465, com 95% deles sendo negros (a população negra no estado é de 80%).
Assim, a "democracia" brasileira construiu perversamente um sistema representativo "branco", com correspondente criminalização do "ser negro", que ultrapassa a própria composição da população. Pode-se dizer que a maioria é criminalizada e perseguida pelas estruturas de segurança pública e uma minoria é representada nos aparelhos institucionais.
Tal distorção segue em paralelo com a trágica coincidência de agendas no período da redemocratização do Brasil. No fim dos anos 1980, ao mesmo tempo em que a democracia ia sendo reconstruída no país, avançava um novo ordenamento socioeconômico no capitalismo mundial, o neoliberalismo, que aprofundou a concentração de renda, instituiu relações de trabalho precarizadas, ampliou a subordinação da economia nacional ao circuito global do capitalismo. Por isso, a Constituição de 1988, desde a sua promulgação, vem sendo vilipendiada, alterada, modificada na maior parte das vezes com a remoção ou limitação de direitos sociais.
O Brasil passou quase 2/3 da sua existência com a vigência da escravização de negras e negros. A abolição de 13 de maio de 1888 não foi acompanhada de mudanças significativas que permitissem a inserção plena da população negra. E, nos dias atuais, em que se busca defender a "democracia", esses gargalos persistem. Quem mora na periferia está acostumado a ver invasões de domicílios sem mandado judicial, prisões ilegais, execuções por parte de forças policiais. Um congresso majoritariamente branco e elitista discute medidas que querem recrudescer ainda mais o sistema punitivista que, como os dados mostram, tem como alvo prioritário a população negra. É preciso entender que democracia não pode se limitar a mecanismos procedimentais e formais. Se assim for, fará pouco sentido para a população negra e periférica. Daí, não é de se espantar que escapes autoritários se apresentem como alternativa e ganhem apoio.
*Professor de jornalismo da ECA/USP e escritor
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