Eu não fui ao show da Madonna, realizado no último sábado, reunindo, gratuitamente, mais de 1,5 milhão de pessoas nas areias da Praia de Copacabana, no Rio de Janeiro. Não sou adepto de mobilizações para participar de grandes eventos que atrai multidões, mas, de camarote, assisti ao frenesi envolvendo parte da população brasileira que se preparou (emocional e financeiramente) e se deslocou para essa que, talvez, poderia ser a última oportunidade de vivenciar o espetáculo de música, performances e mensagens de impacto social proposto pela lendária cantora pop.
Ouvi relatos de amigos que residem no Rio de Janeiro sobre a expectativa para o apoteótico evento de proporções internacionais monumentais que alterou a rotina, a logística e a cultura da cidade, já tão acostumada a reunir multidões em seus suntuosos réveillons e agitados carnavais. "O Rio está caótico, mas está tão bonito ver a alegria estampada no rosto das pessoas", comentou uma colega jornalista que reside próximo ao hotel que se tornou epicentro dessa agitação atípica para o mês de maio. "Tantos pais levando os filhos para ver um ídolo que marcou a sua juventude!", ela destacou.
No conforto do meu sofá, e com alta definição, porém, acompanhei o show pela televisão, do início ao fim. Vi tudo com riqueza de detalhes. Madonna não ganhou o título de Rainha do Pop à toa. O seu surgimento, nos anos 1980, se deu em um momento marcante para a sociedade global. Era uma época em que a repressão ainda dava um tom bélico à humanidade, mas por meio de suas canções, a garota estadunidense de 20 e poucos anos reforçou não somente a liberdade feminina e o direito de amar e viver dos homossexuais como, principalmente, endossou a luta pela paz mundial e contra o preconceito.
Quarenta anos depois, a The Celebration Tour de Madonna encontra duas grandes guerras acontecendo no mundo, um número ainda absurdo de mulheres sendo mortas pelos seus companheiros e milhares de vidas da comunidade LGBTQIAPN+ sendo perdidas, se não mais para a Aids, por pura intolerância. Esse, inclusive, foi o ponto alto do show, quando, ao som do hit Live to tell, a artista homenageou centenas de pessoas que morreram após se infectarem com o vírus HIV. É a síntese da arte com consciência social e humanitária.
Como era de se esperar, entretanto, religiosos se levantaram enfurecidos nos últimos dias, bradando em favor da família brasileira ultrajada. O repúdio não foi pelo pastor que declarou, no mesmo fim de semana, ter beijado a filha, ainda criança, na boca, mas pelo fato de uma artista internacional incorporar em seu show momentos performáticos envolvendo sexualidade e referências cristãs. Pode ter havido exageros na apresentação, sim. Mas tanto Madonna quanto o público que a abraça há 40 anos e a envolveu com júbilo no último sábado são conscientes de que a religiosidade passivo-agressiva impulsiona crimes de ódio e guerras santas em nome de uma crença irracional que, de certa forma, pode ser tão imoral quanto a extravagância artística exibida, afinal, após as 22 horas na tevê. Que o amor livre e a fé pura vençam em todas as esferas.
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