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Artigo: Rastreabilidade na produção de alimentos precisa incluir pequeno produtor

A questão é vital para a balança comercial do agro, sobretudo quando falamos de exportações para a União Europeia, um mercado relevante que tem adotado critérios cada vez mais rígidos de sustentabilidade e controle de procedência

 14/03/2024 Credito: Ed Alves/CB/DA.Press. Politica. Aumento do preços dos alimentos - Custo de vida em alta.  -  (crédito:  Ed Alves/CB/DA.Press)
14/03/2024 Credito: Ed Alves/CB/DA.Press. Politica. Aumento do preços dos alimentos - Custo de vida em alta. - (crédito: Ed Alves/CB/DA.Press)

* CLÁUDIA BUZZETTE CALAIS Diretora-executiva da Fundação Bunge

No espaço de algumas décadas, o Brasil deixou de ser um país importador de alimentos para se tornar o maior exportador global, além de terceiro maior produtor do mundo. Essa transformação tem a ver com nossas vantagens geográficas, que permitem culturas de todos os tipos e em todas as regiões do país, com investimentos massivos em tecnologia para o aumento da produtividade, mas também com confiança: o agro brasileiro tem penetração mundial porque todos confiam na qualidade e procedência de nossos grãos, proteínas, biocombustíveis, frutas e demais produtos primários.

Defender o protagonismo brasileiro no mercado global passa, portanto, pela proteção e ampliação dessa confiança. Daí a importância de ferramentas cada vez eficientes de rastreabilidade na cadeira produtiva dos alimentos.

A questão é vital para a balança comercial do agro, sobretudo quando falamos de exportações para a União Europeia, um mercado relevante que tem adotado critérios cada vez mais rígidos de sustentabilidade e controle de procedência. Cerca de 14% de nossas exportações de soja em 2023, por exemplo, foram para a Europa, gerando receitas na casa dos US$ 10 bilhões. Descuidar dos atestados de origem da commodity equivaleria a abrir mão desse mercado.

Note-se, porém, que a rastreabilidade não deve ser encarada como simples garantia de acesso a mercados lucrativos — algo protocolar, "para inglês ver", cuja função central é assegurar o escoamento da nossa produção agropecuária -, mas como uma ferramenta, entre muitas outras, de promoção de uma agricultura brasileira sustentável e inclusiva, onde a produção de larga escala, da agricultura familiar e a preservação praticada pelos povos originários tenham a mesma importância.

Certificados podem atestar que um produto atende a padrões internacionais de qualidade, que os insumos usados não trazem riscos à saúde ou ao meio ambiente, que não há violações trabalhistas nessa cadeia, que a produção não se deu em área de desmatamento, que resíduos foram descartados corretamente, mas não podem, sozinhos, resolver tais problemas. Isso passa por medidas que vão da fiscalização eficiente até a conscientização de cada stakeholder - é a conscientização da sociedade, afinal, que estimula critérios mais rigorosos de vigilância. Em outras palavras, rastreabilidade não é uma panaceia, mas é medida obrigatória para garantir a sustentabilidade de uma cadeia produtiva.

Isso significa que o Brasil tem grandes desafios pela frente. Um deles é fazer com que diferentes bases de dados conversem entre si. Nossos sistemas atuais de monitoramento ambiental e agropecuário variam a depender do estado e do bioma; variam também entre sistemas públicos e privados. Não há como melhorar a rastreabilidade da nossa produção sem integrar essas informações, especialmente quando levamos em conta as possibilidades abertas pela inteligência artificial para a análise de dados.

Outro desafio é o da infraestrutura. Rastreabilidade não avança sem transferências tecnológicas e, principalmente, sem desenvolvermos soluções próprias, o que exige investimento nas nossas instituições de pesquisa. Capacidade técnica e capital humano nós temos, basta haver também financiamento à altura. Ademais, as soluções precisam chegar, de fato, a cada ponto da cadeia produtiva de grandes e pequenos. Rastreabilidade eficiente depende de monitoramento geoespacial e conectividade, sendo que apenas 30% da área agrícola nacional tem cobertura de internet.

Por fim, é preciso cuidado para que o rigor com a cadeia de custódia do produto agrícola não se torne ferramenta de exclusão. Os pequenos e médios produtores não têm condições materiais, tampouco conhecimento técnico para atender aos mesmos critérios de gerenciamento de uma grande agroindústria. Exigências de rastreabilidade precisam ser moduladas de acordo com as condições concretas de cada produtor — quando falamos em sustentabilidade, afinal, não podemos nos esquecer de sua dimensão social.

Por outro lado, é preciso dar condições para que esse pequeno agricultor ou pecuarista se enquadre em processos cada vez mais completos de rastreabilidade, tanto pela via da infraestrutura (e do crédito) quando pela via da capacitação. Critérios irreais de certificação, ainda que bem-intencionados, podem excluir do mercado produtores menores, o que vai na contramão da meta de garantia da segurança alimentar do país, já que são esses produtores os responsáveis pela maior parte do que chega à nossa mesa.

Ao fim e ao cabo, fortalecer a rastreabilidade na produção brasileira de alimentos depende de uma mudança de perspectiva. Trata-se de compreender que aumentar a integridade das informações de cada etapa dessas cadeias produtivas não representa um gasto, mas um investimento. Rastreabilidade agrega valor ao produto nacional, dá credibilidade ao país e abre mercados. Como quase sempre é o caso, investir na sustentabilidade ambiental e social de um setor contribui, também, para sua sustentabilidade econômica.

 

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postado em 07/05/2024 06:00
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