Análise

Artigo: De dilúvios e apocalipses

Registros paleoclimáticos não deixam dúvidas de que, depois da industrialização, eventos como secas e inundações tornaram-se muito mais comuns. Há, porém, quem não acredite em mudanças climáticas, embora creia no apocalipse

 Vista a..rea do CT Parque Gigante , nesta sexta-feira 03. O CT encontra-se alagado devido ..s fortes chuvas que atingem o estado do Rio Grande do Sul.
     -  (crédito: Estadão Conteúdo)
Vista a..rea do CT Parque Gigante , nesta sexta-feira 03. O CT encontra-se alagado devido ..s fortes chuvas que atingem o estado do Rio Grande do Sul. - (crédito: Estadão Conteúdo)

Os seres humanos parecem ter uma fixação ancestral com o fim do mundo e grande facilidade para acreditar em mitologias que o descrevem. Embora o roteiro mude de acordo com a época e a civilização, há um componente universal que prenuncia o apocalipse: o dilúvio.

Uma das narrativas mais conhecidas sobre o tema é a história bíblica de Noé, patriarca que, a mando de Deus, recomeçou o mundo com seu barco repleto de animais. Na antiga Mesopotâmia (atual Iraque), há muitos mitos sobre a chuva que antecede o fim. O primeiro conhecido foi registrado em cuneiforme — a forma mais antiga da escrita —, e precede em 2 mil anos o livro do Gênesis. Conhecido como Mito de Atrahasis, conta como um homem (Atrahasis) liderou um grupo de sobreviventes após a primeira destruição do planeta, causada por uma enchente.

Para a religião hindu, de origem indiana, hoje vivemos a quarta era (yuga) do mundo. Cada uma delas dura 12 mil anos e é encerrada pelo dilúvio. Mais próximos de nós, os povos da etnia kaigang, que ocupavam o litoral de São Paulo e de toda a Região Sul, explicam sua origem com um temporal que devastou o planeta; muito tempo depois, o chão tremeu e, da Terra, saíram seus ancestrais.

A ideia do apocalipse não ficou no passado: vez por outra, inventam-se profecias (como a do "calendário maia", em 2012, ou ameaças de asteroides e meteoros). Um número razoável de pessoas acredita nessas histórias.

O tema é explorado no cinema e em séries de TV — recentemente, zumbis substituíram o dilúvio como os destruidores do mundo. Há, porém, outros deflagradores da hecatombe, mais críveis e atuais, como as intervenções humanas no planeta, narradas em títulos como Interestelar, Não olhe para cima e Destruição final.

O Brasil vive, hoje, seu dilúvio. Tempestades que atingiram o Rio Grande do Sul ameaçam mais de 260 municípios, mataram ao menos 66 pessoas e afetaram, de alguma forma, 351.639, conforme números divulgados no domingo. Segundo meteorologistas, a tragédia é combinação de fatores que incluem a onda de calor no Centro-Oeste, uma frente fria e uma corrente de vento vindas do Sul e um corredor de umidade da Amazônia.

Todas essas ocorrências são naturais e acompanham o planeta desde sua formação. Porém, há décadas a ciência alerta: mudanças climáticas induzidas pela atividade humana intensificam a frequência e a gravidade de fenômenos meteorológicos extremos. Os registros paleoclimáticos não deixam dúvidas de que, depois da industrialização, no século 19, eventos como secas e inundações tornaram-se muito mais comuns.

Há, porém, quem não acredite em mudanças climáticas, embora creia no apocalipse. Evidências científicas são desafiadas por argumentos político-partidários, prefere-se fechar os olhos para décadas de estudos conduzidos com o maior rigor em universidades e centros de pesquisa.

Um dia, em inimagináveis 5 milhões de anos, o Sol explodirá e, ao se transformar em uma estrela gigante vermelha, destruirá a Terra. Se o fim do mundo virá antes disso não depende, como os mitos propagam, da ira de divindades.

Está na mão da humanidade impedir o dilúvio final.

 

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postado em 06/05/2024 05:00
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