A fome, como disse Josué de Castro, é resultado de escolhas políticas que perpetuam desigualdades. Os recentes resultados divulgados pelo IBGE apontando que os indicadores de segurança alimentar voltaram a melhorar no Brasil no mesmo momento em que as políticas sociais voltaram a ser prioridade confirmam essa tese.
Para entender os resultados que o IBGE trouxe ao aplicar a Escala Brasileira de Medida Domiciliar de Insegurança Alimentar (Ebia) em sua Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - Contínua (Pnad-C), é preciso antes olhar como esse indicador se comportou ao longo de seus quase 20 anos de coletas.
A primeira aplicação do questionário ocorreu em 2004, pelo próprio IBGE, no segundo ano do primeiro mandato do presidente Lula, que tinha o programa Fome Zero como agregador de uma série de iniciativas, como o Programa Bolsa Família e o Programa de Aquisição de Alimentos da agricultura familiar.
Naquele ano, a pesquisa mostrou que cerca de 35% dos domicílios brasileiros tinham algum tipo de insegurança alimentar. E que, em 6,5% do total de domicílios brasileiros, havia a situação de insegurança alimentar grave — aquela em que adultos e crianças, sem ter o suficiente para se alimentar, sofriam com a fome.
A segunda aplicação da pesquisa, em 2009, já trouxe resultados melhores. Porém, foi em 2013, quando as ações de combate à fome estavam maduras e sendo aplicadas há vários anos, que o Brasil atingiu os melhores indicadores. A parcela total de domicílios em insegurança alimentar caiu para 22,6%. E a parcela de domicílios em que havia fome caiu para menos da metade do aferido na década anterior: 3,2%. O Brasil foi apontado como referência, por diversos organismos internacionais, no campo da segurança alimentar.
Esse foi o melhor resultado obtido até hoje. E, infelizmente, não foi duradouro. Em 2018, ainda no governo Michel Temer, a insegurança alimentar voltou a crescer — atingindo de 36,7% dos lares. E a fome chegou a 4,6% dos domicílios, segundo a última sondagem que o IBGE fez utilizando a escala Ebia naquela década.
Durante o governo Bolsonaro, houve intensificação dos retrocessos em políticas públicas, foram extintas instituições importantes, a exemplo do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), e, logo depois, a pandemia agravou a situação de fome no país. Além disso, houve a suspensão da realização da Ebia.
Ante o apagão de informações, duas pesquisas foram aplicadas pela Rede Penssan — que agrega especialistas e instituições acadêmicas de todo o Brasil — nos anos de 2020 e 2022. Nos dois inquéritos, que também utilizaram a escala Ebia, foram registrados os efeitos das opções políticas de não priorizar o combate à fome — majorados pela pandemia da covid-19. A pesquisa de 2020 apontou que a insegurança alimentar chegava a mais da metade dos lares, 55,2%, e a fome, a 9% dos domicílios. Em 2022, a insegurança alimentar subiu para 58,7% dos lares, e a fome, a 15,5% de todos os domicílios. A manchete de que 33 milhões de pessoas passavam fome foi anunciada pelos principais veículos do país, em junho de 2022.
Em 2023, o IBGE, em parceria com o governo federal, retomou a pesquisa, e a Ebia foi novamente utilizada no suplemento de segurança alimentar, agora da Pnad-C. Os dados são melhores que 2018 e os mais próximos de 2013 na série iniciada em 2004. Revelam, portanto, que se rompeu a tendência de aumento dos níveis de insegurança alimentar e que houve uma redução expressiva da fome.
Quando saímos de um percentual de 15,5% de domicílios em insegurança alimentar grave no início de 2022 (Rede Penssan) para um percentual de 4,1% no último trimestre de 2023 (IBGE), é possível deduzir que aproximadamente 20 milhões de pessoas deixaram de passar fome no período entre as duas pesquisas. Isso porque as instituições usaram a mesma metodologia, mudando apenas o número de perguntas do questionário utilizado, mas fazendo as mesmas oito questões do bloco principal da Ebia. Mesmo com uma pequena variação marginal entre os resultados, é possível compreender a alteração dos indicadores de insegurança alimentar.
Os novos números do IBGE apontam 8,7 milhões de pessoas em insegurança alimentar grave. Ainda há muito a se fazer, mas, olhando a trajetória da Ebia, a redução do número de pessoas passando fome, num período tão curto, é histórica, e só foi possível porque houve a priorização da agenda de combate à fome com a retomada de um conjunto de programas, hoje reunidos no Brasil Sem Fome, e a adoção de uma política econômica que gera crescimento com redução de desigualdades.
As escolhas de redução da fome estão acertadas, mas é preciso o compromisso contínuo do governo federal, dos outros entes federativos, dos outros poderes para garantir que, nesse imenso e rico país, ninguém sofra com insegurança alimentar grave. Essa é a maior prioridade e urgência desse governo, que já deu provas que está reconstruindo um país livre da fome.
VALÉRIA BURITY
Secretária nacional da Secretaria Extraordinária de Combate à Pobreza e à Fome do MDS
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