BENITO SALOMÃO*
Recentemente, o governo anunciou a alteração da meta fiscal para o ano de 2025, anteriormente, o Novo Arcabouço Fiscal (NAF) previa um resultado primário de 0,5% do Produto Interno Bruto (PIB) que foi, agora, rebaixado para 0% do PIB. Na imprensa, há inúmeras análises sobre os efeitos disso para a sustentabilidade do endividamento público. Porém, a estabilidade da dívida não é a finalidade de uma regra fiscal, mas, sim, sua consequência.
Para entender a importância de regras macroeconômicas, é preciso retornar a algumas décadas na história do pensamento e resgatar a revolução Novo-Clássica dos anos 1970, com a instituição da Hipótese das Expectativas Racionais (HER) de Muth (1961). Em linhas gerais, a HER supõe que agentes privados tomam decisões sequenciais sobre consumo, preços, salários etc., baseadas em expectativas quanto ao estado da economia, formuladas racionalmente visando maximizar o seu bem-estar e também condicionadas à informação disponível no presente sobre o estado da economia. Nesse mundo, a política macroeconômica, fiscal, ou monetária, afeta o estado da economia e, consequentemente, as expectativas dos agentes que condicionam suas decisões supracitadas.
A implicação disso é que os efeitos esperados de uma política macro nos modelos anteriores keynesianos, ou monetaristas, deixam de ser observados. Nas palavras de Kydland & Prescott (1977), as tradicionais técnicas de controle ótimo não são adequadas para prever o resultado de uma política ótima em um contexto de expectativas racionais. Isso porque os agentes têm um comportamento antes da implementação da política, baseado em suas expectativas acerca do estado da economia, porém, dado que a política interfere no estado da economia, os agentes mudarão o seu comportamento após a sua entrada em vigor. Esse é um resumo bastante simplificado do que os autores chamam de inconsistência dinâmica da política monetária, que está na raiz do viés inflacionário. Porém, como bem observado por Auerbach (2019), o problema da inconsistência dinâmica pode ser facilmente estendido para a política fiscal. Mas o que essa breve passagem pela história do pensamento tem a ver com a mudança da meta fiscal?
Ao observar que políticas desenhadas de forma ótima, produzem resultados subótimos, porque desencadeiam reações no setor privado, Kydland & Prescott propõem que a política macroeconômica seja submetida a regras de manuseio de seus instrumentos, cujo objetivo é evitar mudanças bruscas no comportamento privado. Em suma, regras existem para atenuar o problema da inconsistência dinâmica, sua consequência é um resultado macroeconômico melhor (em termos de PIB, inflação e, no caso da política fiscal, de dívida pública) do que seria observado no caso da ação discricionária.
Porém, como bem observado por Barro & Gordon (1983), a simples existência de regras formais não garante o desempenho. Como as regras ancoram comportamentos privados, é preciso que haja confiança nesse setor que forma expectativas racionais quanto ao cumprimento delas! Com isso, surge toda uma literatura relacionada à reputação das instituições econômicas e a sua credibilidade. Nesse aspecto, a mudança da meta fiscal, anunciada recentemente, é um clássico exemplo da inconsistência dinâmica e perda da credibilidade da regra fiscal recém-criada que pode ter consequências indesejáveis.
A história das regras fiscais brasileira tem início em 1999 com a aprovação do Regime de Metas Primárias (RMP) e da Lei de Responsabilidade Fiscal em 2000. Tais regras performaram bem na economia brasileira até o fim dos anos 2000 quando se evidenciou as manobras contábeis denominadas pedaladas fiscais. Naquela época, ficou claro que os resultados primários divulgados eram artificiais sustentados em "contabilidades criativas". Após a grande crise brasileira entre 2014-2016, uma nova regra fiscal, mais rígida foi instituída, um teto de gastos primários instituído na Constituição por pelo menos 10 anos.
O Novo Regime Fiscal foi capaz de estancar a expansão sem precedentes da dívida pública, mas com o advento da pandemia, mostrou ser um sério obstáculo ao apetite por gastos de Brasília, passando a ser alvo de inúmeras alterações e flexibilizações cujo impacto fiscal acumulado foi superior a R$ 800 bilhões.
Com a desmoralização do teto a partir de sucessivas PECs que autorizavam "furos" e a eleição de um governo hostil à regra formulada por um grupo adversário, o teto foi substituído pelo NAF que se encontra apenas no segundo ano de vigência e já viu, na mudança da meta primária de 2025, o seu primeiro descumprimento. Isso escancara a dificuldade de romper com o clássico padrão de discricionariedade fiscal verificados no Brasil nos últimos 15 anos e o quão "time inconsistent" é a política fiscal no Brasil.
*Doutor em economia pelo PPGE - Universidade Federal de Uberlândia