Saúde

Artigo: 'A questão da ayahuasca e a cognição'

Artigos científicos mostram que, na grande maioria das vezes, o consumo é seguro, mas que a literatura sobre os efeitos cognitivos ainda precisa avançar

Ricardo Afonso Teixeira*

Diariamente ouço a pergunta: "Pode causar algum efeito colateral?" A resposta é sempre a de que tal medicamento pode sim, só pode, mas não é tão comum. Semanalmente, um ou outro volta ao consultório dizendo que o medicamento provocou sintomas neuropsiquiátricos que limitam suas atividades. Trocamos a medicação, e o desfecho quase sempre é de acerto, e lá se vão 30 anos.

No início de março, uma paciente me interrogou se o uso crônico da ayahuasca poderia contribuir para as dificuldades executivas que ela vinha apresentando. Pedi uma ou duas semanas para respondê-la, e minha resposta foi a de que a ayahuasca poderia influenciar negativamente o estado cognitivo. Essa resposta foi publicada na coluna Neurônios em Dia deste jornal no mesmo mês, preservando o anonimato da paciente.

Deixei claro que existe um crescente corpo de evidências dos benefícios das drogas psicodélicas no tratamento de diversas condições neuropsiquiátricas, e sou um entusiasta dessa janela de oportunidade terapêutica, e que existem estudos que demonstram incrementos em algumas dimensões cognitivas. No início deste mês, um leitor publicou neste jornal a opinião de que "pesquisas demonstram que o uso prolongado de ayahuasca não prejudica a função cognitiva. Afirmações arbitrárias e desinformadas, sim".

Arbitrariedade, ao meu ver, seria responder de prontidão à paciente que a ayahuasca contribui para suas dificuldades cognitivas. A literatura mostra efeitos promissores e surpreendentes sobre o cérebro em modelos animais e em pessoas sem doença neuropsiquiátrica. Os pesquisadores são quase uníssonos em reconhecer que ainda há muito a se aprimorar metodologicamente para se ter uma opinião mais sólida sobre essa questão. Amostragem maior, melhor controle de fatores confundidores, como uso concomitante de outras substâncias psicoativas, nível de pureza dos preparados, modo de preparo etc. Algumas dessas críticas podem ser exageradas, como bem apresentou Labate e colaboradores no Journal of Psychedelic Studies 2023.

O médico que vai em busca da segurança/efeitos adversos da ayahuasca encontrará recorrentemente artigos científicos mostrando que, na grande maioria das vezes, o consumo é seguro, mas que a literatura sobre os efeitos cognitivos ainda precisa avançar. Encontrará também a pesquisa que falo um pouco mais a seguir.

A Global Ayahuasca Survey, veiculada por este jornal no dia 16/11/2022, fez uma enquete, que também não é a metodologia dos sonhos, mas envolveu mais de 10 mil usuários da ayahuasca, em 50 diferentes países, que responderam sobre efeitos adversos da droga. Os resultados apontaram que 55,4% dos participantes apresentaram efeitos adversos cognitivos, emocionais e de alteração da percepção nas primeiras semanas ou meses após o consumo. Isso inclui sentir-se desconectado ou solitário, pesadelos, pensamentos e sentimentos perturbadores, sintomas ansiosos e depressivos, preocupação incontrolável, dificuldade em discernir o que é real ou irreal, ver ou escutar coisas que os outros não percebem, sentir-se energeticamente atacado ou com uma conexão prejudicial com um mundo espiritual, distorções visuais. Para a maioria, os sintomas duraram menos de uma semana, e eles acreditavam que faziam parte de um processo positivo de crescimento e integração. Isso sem falar dos sintomas adversos somáticos: 17% reportaram cefaleia, por exemplo.

Esse estudo teve como base a Universidade Melbourne, na Austrália, com a colaboração de pesquisadores de Brasil, República Tcheca, Espanha e Suíça. É um trabalho que visa colaborar na mensuração do custo/benefício do uso da ayahuasca ao se pensar em saúde pública. Eles assumem, assim como outros pesquisadores, que essa é uma questão ainda sub-representada na literatura.

Os efeitos adversos de natureza mental podem prejudicar o desempenho cognitivo para alguns. No início do artigo, explicitei meu dia a dia com os produtos da Big Pharma, e que, em muitos casos, precisamos trocá-los após a intolerância pelos efeitos colaterais, na esmagadora maioria das vezes de ordem mental/cognitiva. Cefaleia também pode limitar, restringindo as atividades de vida diárias, incluindo o trabalho. E era nesse último quesito que a paciente queria melhorar. Lembro que a enxaqueca, por exemplo, é a segunda maior causa de incapacidade entre todas as doenças e a primeira entre mulheres com menos de 50 anos.

Terminei nosso segundo encontro com o discurso de que, mesmo que o consumo semanal de ayahuasca possa ter alguma influência no desempenho executivo dela, essa é uma questão complexa que mereceria muita reflexão. Arbitrariedade também seria falar para ela não consumir mais algo que é tão especial na sua vida, tanto do ponto de vista espiritual como social.

*Doutor em neurologia pela Unicamp, professor do curso de medicina do Unieuro e neurologista do Instituto do Cérebro de Brasília 

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