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Artigo: Bebendo cerveja com Niemeyer

Sentamos na Casa de Chá, no centro do poder do Brasil, em sua praça mais importante, pensada pelo maior arquiteto do mundo e sendo utilizada como um bar típico de qualquer cidadezinha brasileira

O encontro inusitado se deu na Casa de Chá -  (crédito: D.A/CB Press)
O encontro inusitado se deu na Casa de Chá - (crédito: D.A/CB Press)

Ricardo Mansueto Miranda Ferreira*

A década de 1980 foi de grandes mudanças em Brasília. A ditadura chegava ao fim e o político José Aparecido era indicado governador. Ele trouxe de volta Oscar Niemeyer para dar continuidade aos projetos da capital. Um dos desejos do governador era conseguir melhorar a iluminação da Praça dos Três Poderes, instalando uma iluminação feérica.

Fomos convocados, junto com outros técnicos da concessionária CEB e o nosso diretor Vinicius, para acompanhar a visita noturna do Niemeyer ao local. Éramos jovens e o idolatrávamos. O Vinícius, que não tinha mais de 30 anos, ficou sem acreditar da primeira vez que sua secretária o informou que Niemeyer queria falar-lhe. Pensando ser um trote, respondeu: "Diz pra ele que o Rui Barbosa não pode atender".

Numa noite quente e seca, próximo ao STF, mostramos as opções que tínhamos pensado para a solução do desafio do governador. O diálogo com o arquiteto fluiu com cordialidade, ele com muito interesse e disposição, apesar de já contar 80 anos. Um dos desafios na realização da iluminação de monumentos e fachadas arquitetônicas é esconder os equipamentos que dão suporte às lâmpadas e são visíveis durante o dia, causando poluição visual à obra. Por isso, a maioria desses projetos é realizada com a fonte de luz vinda do chão, ou abaixo do nível do solo. Niemeyer sabia que, para atender ao governador, com o alto nível de iluminamento, algum dano visual diurno seria provocado na sua obra.

A Casa de Chá, naquela época, estava sendo utilizada como um bar, com muitas lâmpadas fluorescentes ofuscantes, que, por ironia, já tinha uma iluminação feérica. Em determinado momento da apresentação, comentei com Niemeyer: "Só não sabemos o que fazer com a Casa de Chá!". Ele olhou, ficou visivelmente contrariado e começou a caminhar com a sua passada tranquila, mas determinada, em direção à Casa de Chá. É claro que todos nós o acompanhamos. Lá chegando, desceu os poucos degraus e foi logo perguntando ao primeiro garçom com quem se deparou pelo responsável por aquelas lâmpadas. Numa presença de espírito admirável, o Vinícius, com a sua alta estatura, se interpôs entre os dois e falou: " Este é o doutor Niemeyer, o homem que construiu tudo isso aqui". O garçom, recém-chegado da Paraíba, que não estava com cara de bons amigos durante a abordagem do arquiteto, se transformou numa feição de paz e disse suavemente: "Sim, doutor!"'

O arquiteto reclamou das lâmpadas ofuscantes, mas logo compreendeu a impossibilidade daquele garçom alterar algo. Era como se Monet ou Renoir tivesse uma de suas telas danificadas e sensível, compreendesse que quem a estava danificando o tinha ajudado a pintar. Rapidamente, ele passou do estado emocional para o racional, se calou e, como se quisesse pedir desculpas, arrastou uma barulhenta cadeira de uma das mesas vazias e disse em voz alta: "Vamos beber uma cerveja". O garçom ficou com cara de felicidade e saiu correndo para buscar as bebidas. Sentamos na Casa de Chá, no centro do poder do Brasil, em sua praça mais importante, pensada pelo maior arquiteto do mundo e sendo utilizada como um bar típico de qualquer cidadezinha brasileira, com garçons ainda com as mãos calejadas de distantes áreas rurais, com vestimentas típicas de países frios, na umidade de 15% e sensação térmica beirando 40°C.

Estávamos em umas 10 pessoas. Findado o encontro, o garçom trouxe as despesas e o arquiteto de imediato disse que a conta era dele. Os cartões de crédito não eram populares, e, quando ele retirou o dinheiro do bolso, não era suficiente para pagar. Eram tempos de inflação alta, até 3% ao dia, e os preços se multiplicavam. Portávamos apenas o crachá da CEB, sem dinheiro, exceto o engenheiro Luís Carlos, conhecido na CEB como pão-duro e que não pagava um picolé para ninguém. Foi ele quem pagou a conta.

O governador José Aparecido, adequado para aqueles tempos de transição, e o Niemeyer já não são mais deste nosso mundo. A iluminação feérica e as opções discutidas naquela noite não foram adiante. Trocamos equipamentos sem alterar a filosofia original do projeto, o que melhorou o nível de iluminamento da Praça. Mas, até recentemente, eu brincava com o Luís Carlos, dizendo que o Niemeyer iria nos convidar para tomar umas cervejas novamente. A resposta, invariavelmente, era a mesma: "É, mas desta vez ele paga a conta." Sim, Luís Carlos, no céu. E lá, não deve ter inflação.

*Engenheiro eletricista da CEB de 1980 a 2006

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postado em 22/04/2024 06:00
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