Há 21 anos, o Estado brasileiro vem cometendo um criminoso ato de racismo. O não cumprimento da Lei 10.639, sancionada em 9 de janeiro de 2003 pelo presidente Lula logo no início de seu primeiro mandato. É um clássico caso de racismo institucional cometido pelo Estado em todas as suas esferas: federal, estadual e municipal.
A 10.639 é a típica "lei que não pega". É interessante notar que leis que atendem a demandas do povo negro e pobre têm essa mágica: "não pegam". Trata-se de mais uma vertente da estupidez institucional de tornar visível o estereótipo do negro bandido à mercê do braço armado da instituição racista e, invisíveis, nossos aspectos positivos e o que interessa, de fato, à vida do povo negro.
A omissão no cumprimento da Lei 10.639 é um ato de racismo institucional que encontra paralelos ao longo da história da presença negra no Brasil colonizado. Lá pelos meados da terceira década do século 14, o papa autorizou os portugueses: podem escravizar, negros não possuem alma.
Desde então, o processo de escravização da população negra trazida da África ganha mais e mais autorizações institucionais para a manutenção e a ampliação da crueldade. No século 19, especialmente, uma série de leis já do Império do Brasil preparavam o terreno para a estruturação definitiva do racismo brasileiro. Não podem ter terras, não podem ter escola, não podem ter serviços de saúde, não podem ter moradias humanas, não podem ter financiamento. Enquanto isso, tudo aqui e muito mais foi dado e permitido aos imigrantes europeus estimulados a chegar após a "abolição".
O racismo institucional é o pai do racismo estrutural. E o Estado brasileiro o realimenta desde sempre, cedendo às forças reacionárias, à elite racista. Mesmo em governos democráticos-progressistas, como o Lula I e II. Naqueles oito anos, nada foi feito para que a Lei 10.639 fosse aplicada de fato. O mesmo ocorreu nos anos do governo Dilma.
Agora, com um governo de coalizão, uma frente mal arrumada, o núcleo central, tido como progressista, cede com frequência vergonhosa ao atraso, quando não ao fascismo. Esse com uma força ainda descomunal, mesmo fora da orientação fascista que foi de Bolsonaro, com uma emulação racista a persistir.
É impressionante como se amplificou, em tal período, o racismo na sociedade brasileira em geral. É assustador: se incrustou severamente nas instituições de Estado, especialmente em seu aparato policial, em largos setores do Judiciário — com ênfase em primeira e segunda instâncias — e na maioria da composição retrógrada do Legislativo, em todos os âmbitos.
A Lei 10.639 é uma alteração da Lei 9.394, de 20 de novembro de 1996, que estabelece a LDB, as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. A 10.639 inclui, na LDB, "o currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade de tema História e Cultura Afro-brasileira".
O fato, no entanto, é que a aplicação da Lei 10.639 não existe em lugar nenhum. O que existe são ações individuais de escolas, pela iniciativa de professores, coordenadores e diretores em referência a datas do movimento negro, em especial o 20 de novembro.
Nada suficiente para suplantar o estereótipo negativo do indivíduo e do continente do qual ele foi arrancado. Insuficiente para ajudar a corrigir o racismo estruturado pelo Estado brasileiro por quase cinco séculos de subjugação e desumanização de nós negros.
A construção ideológica do racismo na mídia é um dos temas de palestras que profiro em escolas de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, Bahia e Distrito Federal (aqui, a convite do Sinpro, que, aliás, em relação à 10.639 tem feito o trabalho que o GDF não faz). Por minhas andanças, nunca verifiquei estabelecido nos currículos dessas unidades da Federação e seus municípios o ensino da história e cultura afro-brasileira.
É uma criminosa omissão que se amplifica na esfera federal, com o Ministério da Educação, ao qual cabe fazer com que estados e municípios cumpram a lei, e o descaso dos ministérios da Igualdade Racial e de Direitos Humanos, de, em sua institucionalidade transversal, ao menos estabelecer um debate com o MEC.
Penso que essa é a pauta mais emergente de todas as entidades do movimento: cobrar veementemente do Estado brasileiro o cumprimento da Lei 10.639. Cobrar do MEC, do MIR e do MDH, mas também recorrer ao Ministério Público Federal e ao Supremo Tribunal Federal. Mais ainda: denunciar o Estado brasileiro em cortes internacionais pela prática criminosa desse racismo institucional.
*João Orozimbo Negrão, jornalista e militante da União dos Negros pela Igualdade (Unegro)
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