História

Artigo: Tiradentes e Kotcha: dois heróis e uma história de liberdade

A história ensinou-nos que Joaquim e Korun são, de fato, os precursores dos nossos Estados modernos, combatentes pela liberdade e lendas da libertação nacional

 Alberto da Veiga Guignard - Execucao de Tiradentes 1961 (60x80cm)
     -  (crédito:  Jaime Acioli)
Alberto da Veiga Guignard - Execucao de Tiradentes 1961 (60x80cm) - (crédito: Jaime Acioli)

A metade do século 18 trouxe ao mundo, nos seus dois lados extremos, na América do Sul e no Sudeste europeu, duas personalidades que nunca se encontraram e, com certeza, não sabiam uma da outra.

O primeiro nasceu em 1746, na fazenda Pombal, na então colônia do Brasil, próximo ao povoado de Santa Rita do Rio Abaixo, atual Ritápolis, local que ainda hoje conta com menos de 5 mil habitantes. O nome dele era Joaquim José da Silva Xavier, apelidado de Tiradentes.

O segundo nasceu em 1755, em Yanhevats, atual povoado de Kotcha, na então escravizada Sérvia, num local que ainda hoje conta com menos de 1 mil habitantes. Seu nome era Korun Andjelkovitch (a raiz de seu sobrenome é a palavra anjo), apelidado de Kotcha.

Ambos, entre outras coisas, estavam atuando na área de comércio, com sorte variável. Os dois ingressaram em grupos militares ainda jovens — Tiradentes ingressou nas tropas mineiras e tornou-se comandante de uma unidade em 1781, enquanto Kotcha serviu na Unidade Militar Livre sérvia, fundada pelos austríacos para lutar contra o Império Otomano.

No mesmo ano, 1788, Tiradentes, junto com os seus companheiros, empresários proeminentes, padres e artistas, e fundou um grupo libertário que iniciaria uma espécie de revolta; enquanto Kotcha, junto com os seus companheiros da Unidade Militar, alguns líderes religiosos e cidadãos proeminentes, criou um movimento que se transformaria numa rebelião.

Ao mesmo tempo, a 10 mil quilômetros um do outro, no Brasil (1789) e na Sérvia (1788-1791), ocorreram dois fenômenos políticos — a Inconfidência Mineira e a Rebelião de Kotcha — que fundaram o caminho para a independência de dois futuros países livres: o Império do Brasil e o Principado da Sérvia.

Duas rebeliões reprimidas e, aparentemente, fracassadas. Duas repúblicas pequeninas e de curta duração. Ambas fundadas nas margens de impérios poderosos e que foram as sementes da liberdade das quais brotaram duas monarquias independentes.

Os seus líderes, os heróis da nossa história, mas sobretudo das nossas nações e dos nossos estados, tiveram um destino semelhante. Tiradentes foi enforcado aos 45 anos, em abril de 1792, após um processo improvisado em que seus juízes não sabiam ou não queriam saber que, diante deles, estava um combatente pela liberdade deles também.

O Kotcha tinha apenas 33 anos de idade quando, em novembro de 1788, seus inimigos o capturaram e o empalaram (essa é uma das formas mais cruéis de uma pessoa ser executada; sobre essa punição cruel e, em geral, sobre a vida do povo sérvio sob a ocupação otomana, que durou vários séculos, o vencedor do prêmio Nobel Ivo Andri, o maior escritor sérvio de todos os tempos, escreve com maestria em seu livro Ponte sobre o Drina).

O alferes Tiradentes e o capitão Kotcha, como ainda são conhecidos os dois heróis, eram súditos de Portugal e da Turquia, que deveriam ser gratos por tudo que as metrópoles distantes lhes providenciavam. Suas atividades políticas foram consideradas traição e perfídia. No entanto, a história ensinou-nos que Joaquim e Korun são, de fato, os precursores dos nossos Estados modernos, combatentes pela liberdade e lendas da libertação nacional.

Suas mortes não foram em vão e não foram esquecidas. Hoje, mais de dois séculos depois da Inconfidência Mineira e da Rebelião de Kotcha, lembramos seus sacrifícios e, nessa ocasião, às vésperas do Dia de Tiradentes de 2024, talvez pela primeira vez, jogamos luz sobre como sérvios e brasileiros, simultaneamente e de maneira semelhante, restauraram e criaram seus Estados, e olhamos para esses processos apenas geograficamente distantes do mesmo ângulo. As ideias que os guiaram eram, em essência, muito próximas e baseadas nas tradições revolucionárias da época.

Na Sérvia, diz-se que a noite é mais escura antes do amanhecer. Depois da Rebelião de Kotcha, a situação na Sérvia ficou muito difícil, e o subjugador foi impiedoso. No entanto, logo amanheceu. Graças a Tiradentes e Kotcha, nas décadas seguintes, tudo que o colonizador criou durante séculos como aparelho de coerção foi demolido e desapareceu.

A Revolução Sérvia começou em 1804, e os insurgentes, que, em grande número, eram companheiros de Kotcha, com a experiência adquirida nas batalhas, estabeleceram os fundamentos da atual Sérvia. A autonomia foi conquistada em 1830, e a primeira constituição foi adotada em 1835. Foi semelhante no Brasil. A guerra pela independência começou em 1821 e terminou em 1824, quando a constituição foi aprovada. Dois séculos depois, somos gratos a esses dois heróis por vivermos em liberdade, apreciando-a e defendendo-a, e, mais ainda, porque não a ganhamos de presente.

*Aleksandar Ristic, Embaixador da República da Sérvia na República Federativa do Brasil

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postado em 19/04/2024 06:00
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