Remédios

Artigo: Precificação da vida e incorporação de medicamentos ao SUS

Se quem paga o plano de saúde faz determinado tratamento e se cura, mas quem usa o SUS tem acesso negado e morre, isso gera ao menos à família do usuário uma expectativa de um direito de reparação

Preço dos remédios deve aumentar com reajuste do ICMS -  (crédito: Pexels/Pixabay)
Preço dos remédios deve aumentar com reajuste do ICMS - (crédito: Pexels/Pixabay)

Apesar da Constituição Federal garantir o direito à vida e à saúde e igualar todos os cidadãos, em função das dificuldades vivenciadas por quem depende do SUS, quem tem condição financeira paga um plano de saúde. Os planos são regidos pelas regras da ANS, que atualiza seu rol de seis em seis meses, nos termos da Resolução Normativa 465/2021, e são obrigados a fornecer os medicamentos que estão nessa lista. Nem sempre o fazem, o que gera a polêmica jurisdicionalização da saúde.

No Brasil, ao menos neste momento, já que quando se fala em direito de saúde há uma grande volatilidade nos entendimentos, o rol não é taxativo, e, sim, exemplificativo. Para estar incluído no rol da ANS, o medicamento precisa preencher uma série de requisitos. Quando falamos em SUS, é importante saber se o medicamento está incorporado ou não. Em ambos os casos, existem demandas judiciais, mas cada uma com suas peculiaridades.

A não incorporação, por exemplo, pode se tornar um entrave significativo para o paciente. As demandas judiciais são longas e penosas. Há casos em que o paciente vai a óbito antes que o juiz decida a seu favor. Em outros, a lentidão nas decisões e nos cumprimentos resulta no retardamento do tratamento, gerando consequências severas e irreversíveis. É preciso um combo de fatores para favorecer o resultado almejado.

Para a incorporação de um tratamento ao SUS, é necessário que ele passe por uma análise da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde, e, nesse processo, alguns pontos devem ser analisados. A análise da Conitec é baseada em evidências científicas, considerando aspectos como eficácia e segurança da tecnologia, tudo nos termos do Decreto nº 7.646/2011. No entanto, existem outros fatores que podem levar à negativa do pedido de incorporação ao SUS. Basta uma pesquisa simples para ver que, nos pareceres da Conitec para medicamentos altamente utilizados por pacientes graves mundo afora, são encontradas palavras como "custo adicional", "mais caro" e "impacto orçamentário".

Cabe, portanto, o questionamento: Quanto vale uma vida humana? É possível mensurá-la? No terreno do pensamento, o que nos torna humanos é a incansável luta pela felicidade — aqui personificada no direito e na justiça como instrumentos de busca por uma vida com dignidade, algo extremamente profundo que dá contorno a nossa existência e a sua singularidade, que não pode ser medida, nem pesada. Não tem preço! São inúmeros os fatores que levam o médico assistente a prescrever o medicamento A ou B, e o principal deles é o indivíduo. Todos eles passam pela eficácia, mas, para a Conitec, ela não é suficiente.

Inúmeros medicamentos que estão, há anos, no rol da ANS não foram incorporados ao SUS. Ou seja, se a pessoa tem uma doença grave e um plano de saúde, em tese, fará uso daquele tratamento que seu médico sabe que pode lhe salvar a vida ou lhe dar um fim digno, com menos dor. Mas se ela depender do SUS e não procurar a Justiça, poderá ver sua vida minguando lenta e dolorosamente. Onde fica a igualdade prevista na Constituição?

Mesmo ciente de que é impossível não considerar o impacto orçamentário, soluções precisam ser encontradas, porque a vida do usuário do plano de saúde não tem mais valor do que a do usuário do SUS. É preciso pensar em redução de impostos, custos, quebrar patentes, investir em pesquisas e outras soluções. Se alguém precisa perder algo, esse alguém não pode ser o cidadão doente, sob pena de ver sua cidadania ferida de morte.

Há uma nova tecnologia de combate a alguns tipos de câncer que consiste em extrair uma amostra de sangue, tratar os linfócitos e enviá-la aos Estados Unidos, onde eles "aprenderão" a combater a neoplasia. Logo depois, o sangue é infundido no paciente. Esse tratamento custa cerca de R$ 3 milhões e, aparentemente, somente os planos de saúde têm sido acionados para arcar com ele. Enquanto isso, se esvaem vidas de Marias, Marinas e Josés, todos à espera de se tratar pelo SUS, assim como o fazem outros que têm condição financeira de pagar o plano.

A questão é muito simples: se quem paga o plano faz determinado tratamento e se cura, mas quem usa o SUS tem acesso negado e morre, isso gera ao menos à família do usuário uma expectativa de um direito de reparação, não pela morte, mas porque a ele foi negado o direito de tentar. Fala-se tanto em impacto orçamentário e em medicamento de alto custo, mas, se todos os doentes desse país que não iniciaram o tratamento no momento certo e tiveram prejuízos conhecessem seus direitos, certamente o impacto seria enorme.

A conclusão é de que não somos todos iguais, já que uns podem tratar-se de uma doença devastadora melhor e mais rapidamente do que outros. A diferença está na precificação da vida. A luta pela vida vale muito a pena, tanto no âmbito individual quanto no coletivo, já que é essa luta de massa que faz com que medicamentos sejam incorporados, patentes sejam quebradas e pesquisas sejam iniciadas. Essa reflexão é necessária e urgente, até porque não há nada mais urgente do que a vida e a dignidade humana. 

* Janaína Mathias Guilherme, Advogada especialista em direito civil, processual civil e processual penal; Maria Francisca da Silva Santos, presidente da Associação dos Pacientes com Doenças Neurológicas do Hospital das Clínicas

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Janaína Mathias Guilherme, Maria Francisca da Silva Santos - Opinião
postado em 16/04/2024 06:00
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