JORGE SANTANA*
Uma música da torcida vascaína traz os seguintes versos: "Eu já lutei por negros e operários. Te enfrentei, venci, fiz São Januário Camisas Negras que guardo na memória. Glória, lutas, vitórias. Esta é minha história". O cântico é entoado, a plenos pulmões, por motoboys, favelados da Barreira do Vasco, médicos, estudantes, metalúrgicos, maltrapilhos, entre outros aficionados pelo clube da Colina. Cantam em meio a bandeiras coloridas do orgulho LGBTQI , pavilhões com o punho cerrado estampados e demais insígnias cruzmaltinas tremulando, pulsando como se vivas estivessem.
O cântico que faz a arquibancada de São Januário tremer remete a uma das histórias mais bonitas e importantes do velho esporte bretão em terras tupiniquins. Em 1923, o Vasco da Gama chegou à primeira divisão carioca de futebol, torneio que, à época, era organizado pela Liga Metropolitana dos Sports Atheticos, e conquistou seu primeiro título do campeonato carioca, uma campanha avassaladora (11 vitórias, dois empates e uma derrota). A equipe vitoriosa era composta por jogadores negros, operários e trabalhadores, que ficou conhecida como Camisas Negras.
O triunfo vascaíno despertou uma crise nos rivais. Na época, futebol era coisa de bacana, da elite, de gente fina e que tinha ojeriza ao trabalho e ao trabalhador braçal ("coisa de preto"). A solução encontrada por Flamengo, Fluminense, Botafogo e outros foi criar outra liga, a Associação Metropolitana de Esportes Athleticos (Amea). E o clube da comunidade portuguesa, para se filiar à nova entidade, deveria expulsar 12 de seus jogadores. Em comum, todos eram negros ou operários.
Segundo a nova liga, os 12 condenados da Colina "estariam em desacordo com os padrões morais necessários para a prática do futebol" e "condições sociais apropriadas para o convívio esportivo". Parafraseando versos da canção Haiti, de Caetano Veloso, a questão era: "Como é que pretos, pobres e mulatos querem jogar o nobre football?".
Em 7 de abril de 1924, José Augusto Prestes, presidente do Vasco da Gama, respondeu à liga com uma carta que, de tão importante e ousada, ficou conhecida como Resposta Histórica. No documento, ele discorreu sobre o preconceito de classe e raça, a discriminação contra seus jogadores e que não os excluiria. Dessa forma, desistia de fazer parte da nova entidade que reunia a elite dos clubes cariocas.
Como muitos historiadores já apontaram, o clube de origem lusitana não foi o primeiro a ter jogadores pardos e pretos em suas fileiras. O pioneirismo foi do Bangu Athletic Club, que era situado no subúrbio carioca, com a presença do jogador negro Francisco Carregal, em 1905. Contudo, a Liga Metropolitana não aceitou tamanho disparate, pois, dois anos mais tarde, o clube suburbano contava com dois negros em seu plantel: Carregal e Maia.
Em 1907, a Liga havia decidido pela expulsão do Bangu, conforme comunicado veiculado no jornal Gazeta de Notícias: "Communico-vos que a directoria da Liga, em sessão de hoje, resolveu por unanimidade de votos que não sejam registrados como amador nessa liga as pessoas de côr. Para os fins convenientes ficou deliberado que a todos os clubs filiados se officiasse nesse sentido, afim daqueles scientes dessa resolução de acordo com ella possam proceder. Com alta estima e apresso etc."
O Bangu foi obrigado a disputar a segunda divisão do carioca. O que há de diferente entre os casos do Bangu e do Vasco? Os dois clubes foram punidos por terem atletas negros. Contudo, a resistência vascaína resultou na aceitação do Vasco na Amea (primeira divisão carioca), com todos os seus jogadores, em 1925.
Teve papel especial nesse processo a Resposta Histórica. A carta configura um manifesto em defesa da inclusão e, ainda, uma denúncia do elitismo e racismo no futebol, o que fez da mesma um marco histórico na luta contra o racismo. Há 100 anos, o Vasco se colocava na linha de frente contra o racismo, em defesa da igualdade e da inclusão. Retorno aos versos da canção Sou Vascaíno, muito prazer: "Eu já lutei por negros e operários". Sim, o Vasco foi um dos que lutaram pelos negros, ou melhor, junto aos negros contra o racismo.
Nesses 100 anos, não podemos nos esquecer dos Camisas Negras que desafiaram o racismo e chutaram o preconceito para fora do estádio. Ainda não erradicamos o racismo sequer do futebol, como revelam os dados do relatório do Observatório contra a Discriminação Racial no Futebol. Contudo, é tempo de celebrar aqueles e aquelas que enfrentaram os racistas. Viva os Camisas Negras!
*Professor, doutor de história do Instituto Federal do Paraná e escritor
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