Por Isabel Figueiredo*
Como se o Código Florestal já não fosse desigual o suficiente, permitindo muito mais desmatamento no Cerrado do que na Amazônia, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou, em 20 de março, o Projeto de Lei (PL) 364/19, que pode deixar desprotegidos cerca de 48 milhões de hectares de campos nativos em todo o país. Essa alteração impactaria 50% do Pantanal, 32% dos Pampas e 7% do Cerrado, além de algumas fisionomias de vegetação amazônica, segundo cálculos da SOS Mata Atlântica.
O texto do PL propõe que todas as áreas de campos nativos do país com vegetação não florestal, como os campos de altitude e campos gerais, sejam consideradas de uso rural consolidado. Na prática, significa que essas áreas poderiam ser dispensadas de licenciamento ambiental para uso agrícola, desde que comprovado uso antrópico anterior a julho de 2008.
A proposta dos deputados da bancada ruralista do Congresso Nacional se contrapõe a todo um esforço de técnicos, ambientalistas e lideranças indígenas que trabalham incansavelmente na defesa do bioma Cerrado, o mais ameaçado atualmente pelo agronegócio, que já perdeu 50% de sua cobertura vegetal nativa.
Com o propósito de incidir politicamente no âmbito internacional, um grupo da sociedade civil organizada, representada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Rede Cerrado, Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN) e WWF-Brasil, esteve recentemente na Europa para reuniões e debates com governos e empresas da Holanda, França e Bélgica.
O motivo principal da missão foi a EUDR, a legislação europeia que controla a importação de commodities que estejam gerando desmatamento em outros países, em vigor desde o ano passado. A notícia de haver uma legislação preocupada em mitigar os impactos das importações da Europa em outros países é boa, mas a legislação abrange apenas florestas tropicais e deixa de fora outros ecossistemas.
Segundo vem sendo estudado, a exclusão do Cerrado da normativa europeia pode ter gerado um efeito de "vazamento" da devastação da Amazônia para o segundo maior bioma do Brasil, e pode ser uma das causas do crescimento de 44% do desmatamento do Cerrado no ano de 2023.
Esse efeito já foi visto antes, com a implementação da moratória da soja, a partir de 2018. O compromisso, importantíssimo para reduzir o desmatamento na Amazônia, gerou uma migração de parte do investimento das empresas de produção de soja da Amazônia para o Cerrado, de modo a cumprir acordos e, com isso, garantir a venda do produto no mercado internacional.
A incidência política na Europa, em março, pela defesa do Cerrado, justifica-se pelos números: a Europa é o segundo maior mercado externo da soja brasileira, commodity que é a principal indutora do desmatamento em nosso país. O Brasil é responsável por 42% da soja e 20% da carne consumidas no mundo. Para isso acontecer, 44% do território do bioma Cerrado, que cobre cerca de 25% do território nacional, está tomado pela agropecuária.
Em outro acordo amplamente divulgado, os grandes comerciantes de soja comprometeram-se a parar a conversão de ecossistemas não florestais, como o Cerrado, até 2030 — quando pode ser tarde demais. Esse prazo estendido sinaliza uma estratégia de aproveitar ao máximo a desproteção das savanas, enquanto o agro capitaliza sobre um compromisso ambiental a longo prazo.
Atualmente, a regulação da União Europeia está passando por revisões e a mais importante se refere à inclusão de outros ecossistemas (other wooded lands) na normativa. A comitiva brasileira conversou com políticos, como o senador Yannick Jadot e o líder de partido François Ruffin, além da ministra de Desenvolvimento e Assuntos Internacionais da França, Chrysoula Zacharopoulou, da eurodeputada do Partido Verde, Anna Cavazzini, e da equipe responsável pela revisão da EUDR, como Emanuele Pitto, entre outros.
A delegação brasileira contou com a parceria das Ongs europeias Fern, Mighty Earth, WWF e AidEnvironment e se articulou também com Greenpeace, Animal Protection, EnvolVert, Canopée, Earthworm Foundation, EarthSight, ClientEarth e Global Witness.
Com o objetivo de ampliar o conhecimento dos europeus sobre o bioma Cerrado, em cada cidade foram realizados eventos culturais com imagens do fotógrafo indígena Kamikia Kisedje e degustação de produtos cerratenses, como pequi e baru. Durante a missão, a comitiva brasileira demonstrou que, sem o Cerrado, a legislação europeia não vai alcançar os seus objetivos, uma vez que a maior pegada ecológica atual da Europa está justamente nesse bioma.
*Coordenadora do Programa Cerrado e Caatinga do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN)Letícia VerdiAssessora de Comunicação do ISPN
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