Yuri Salmona*
Se você procurou um filme para assistir, certamente se deparou com o longa-metragem Duna II, do diretor Denis Villeneuve, baseado na consagrada obra de Frank Herbert. Essa história nos apresenta inúmeros paralelos com nossos desafios nada ficcionais, tanto é que pesquisadores das universidades de Bristol e Sheffield, na Inglaterra, elaboraram um modelo demonstrando quão realista é o principal palco do enredo, o planeta Arrakis.
Sem nenhum spoiler, já que conforme pode se presumir, pelo título do filme, a gestão da água está entre os paralelos com a nossa realidade. O referido planeta é um grande deserto, com imensas dunas, onde a água é o bem mais precioso, se não fosse a "especiaria", uma substância que, entre outras coisas, viabiliza o comércio interplanetário. E, para a produção dessa especiaria, é necessário manter o planeta árido, desértico.
Já no nosso planeta, estamos de diferentes formas desertificando e secando a savana mais biodiversa do mundo, o Cerrado, especialmente por conta da ocupação e da produção desregrada de commodities agropecuárias, como carne e soja.
Há mais de 14 milhões de hectares (ao menos 7% do bioma) em processo de desertificação e em franca ampliação. Villeneuve, infelizmente, poderia filmar Duna III em Gilbués (PI), cidade com cerca de 7 mil km² de paisagem dominada por dunas e solo vermelhos.
Já o ressecamento do bioma é generalizado, conforme demonstram diferentes estudos. Verificamos que 87% dos rios observados no Cerrado têm redução significativa de sua vazão, e a perda tende a se intensificar. Esse cenário, que infelizmente não é fictício, deveria ser o centro da pauta do Dia Mundial da Água. Datas comemorativas como essa são como aniversários; servem para celebrarmos e lembrarmos a importância de algo ou alguém. E o que não pode faltar num aniversário? O aniversariante/anfitrião. Quando se fala de água no Brasil, costumeiramente o assunto é remetido à Amazônia, que guarda o maior rio do mundo, ou ao Pantanal, a maior planície alagável do planeta, que, de fato, merecem ser lembrados. Mas, o verdadeiro anfitrião é esquecido: o Cerrado.
Sim, o Cerrado, o bioma das árvores tortas e baixas, é fundamental para que se tenha algo a comemorar no Dia Mundial da Água. Ele bombeia, por meio de seus rios e aquíferos, água pelo Brasil. Bacias como a do São Francisco, Parnaíba e Paraguai (a do Pantanal) dependem totalmente da água do Cerrado. A produção de energia em Itaipu e Sobradinho, que é distribuída pelo país, depende majoritariamente da água cerratense. Praticamente metade da produção de soja e carne está na savana mais biodiversa do mundo, onde se concentra também 80% da irrigação, a maior consumidora de água do país. Ao menos 40% dos brasileiros bebem água do Cerrado.
O anfitrião tem sido sacrificado, trazendo consequências para todos os convidados e envolvidos na celebração. Mais de 3.427 nascentes do Cerrado geram água para o bioma Amazônico e estão gravemente ameaçadas pelo desmatamento; situação similar à da porção de Cerrado que verte água para o Pantanal, que já tem 55% de sua área desmatada.
Esses desmatamentos quebram elos do ciclo hidrológico que a vegetação do bioma preenche insubstituivelmente, o que, entre outros efeitos, diminui a recarga das águas subterrâneas que, por sua vez, desregula o volume dos rios, diminuindo significativamente as vazões e a disponibilidade para todos. Isso já foi observado em estudos, que indicam a perda de mais de 15% do volume da vazão dos rios do Cerrado e uma previsão de 33% a menos de disponibilidade hídrica até 2050. Parece um fim de festa com uma ressaca moral.
Mas nada como um dia após o outro; há um conjunto de ações que, se bem executadas, podem garantir que o coração das águas continue a pulsar. Entre elas, destacam-se: aumentar o rigor e o controle nas autorizações de desmatamento; definir áreas prioritárias para conservação de água; rever e monitorar as outorgas para irrigação; demarcar territórios de povos e comunidades tradicionais; somar esforços para implementar restaurações em larga escala; investir em prevenção e combate ao fogo; e tantas outras.
Parte dessas ações está indicada no Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento e das Queimadas no Bioma Cerrado (PPCerrado), do Ministério do Meio Ambiente, e no Programa Nacional de Revitalização de Bacias Hidrográficas, do Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional. É indispensável fortalecer essas agendas em torno do nosso anfitrião, o Cerrado, coração das águas.