As mulheres negras, apontou a filósofa, antropóloga e referência do feminismo negro Lélia Gonzalez nos anos 1980, passavam (e ainda passamos) por uma tripla exploração — de raça, gênero e classe. Lélia foi a precursora dessa lente da tripla exploração pela qual eram (e ainda somos) exploradas e minorizadas as mulheres negras brasileiras. O relatório Estatísticas de gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil, publicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísitca (IBGE), no último dia 8 de março, aponta que as mulheres negras sofreram (sofremos) maior número de situações de violência quando comparadas com mulheres brancas no ano anterior. Antes que entendam indevidamente: nosso objetivo comum, enquanto sociedade, deveria (deve) ser que nenhuma mulher (negra ou não negra) sofra violência de qualquer tipo, no entanto, é fato que, nos dados atuais, está aí o IBGE para confirmar, as mulheres negras são mais vitimadas por atos de violência.
Ainda assim, seguimos de cabeça erguida e decididas a transformar tal realidade. Sabemos ser filhas da diáspora do continente africano — diáspora forçada literalmente a ferro e fogo pelo regime escravagista da expansão colonial europeia. E, para tal compreensão, Lélia deixa outro legado que devemos acionar no contexto das imediações do 8 de Março: amefricanidade. Graças a Lélia, sabemos ser amefricanas. Foi no texto A categoria político cultural de Amefricanidade, datado de 1988, que Lélia inaugurou o termo Amefricanidade, uma categoria fundamental para nos compreendermos enquanto mulheres negras em nossas especificidades. Uma característica ímpar na amefricanidade é a percepção, defendia Lélia, da herança das "estratégias de resistência cultural".
E, confirmando a estatura da epistemologia afrocentrada de Lélia Gonzalez, vemos, atualmente, mulheres negras empregando tais estratégias de resistência cultural por meio de coletivos, agremiações, grupos culturais, grupos de pesquisa e de Extensão, a exemplo do Cartas para o Amanhã da Universidade de Brasília (UnB), grupos de política, agremiações de profissionais, mídias e portais, a exemplo do Geledés, sindicatos profissionais, a exemplo das Comissões de Jornalistas pela Igualdade Racial (Cojira), nos estudos de gênero e identidade racial de associações de pesquisadores e pesquisadores, a exemplo da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN) e do Grupo de Pesquisa (GP) "Metodologias e Epistemologias Afrodiaspóricas e Contra-Coloniais na Comunicação" da Intercom, entre outros.
Vemos, ainda, estratégias de resistência cultural na comunicação quilombola — em tese recém- defendida por nós e orientadas no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UnB, por Juliana Cézar Nunes —, na Marcha das Mulheres Negras pelo Bem Viver e na defesa das vidas negras — sim, vidas negras importam. Vemos as estratégias preceituadas por Lélia também nas inúmeras lideranças de mulheres negras que defendemos as políticas de cotas para negros em várias instâncias, assim como nas carreiras de mulheres negras cotistas — vide experiências que relatamos na obra em coautoria com Deborah Santos, Vá no seu tempo e vá até o final: mulheres negras cotistas no marco dos 60 anos da UnB. Com acesso gratuito no site da Editora UnB, convidamos a lerem a obra e verem a potência das mulheres negras que construímos também a história da UnB.
Em todas essas instâncias, observo, enquanto cientista das humanidades, pujantes estratégias de resistência cultural das quais Lélia nos falou como próprias à amefricanidade. Sim, pois, Lélia, somos todas amefricanas, e só sabemos sê-lo por você ter nos deixado esse legado conceitual. E, por fim, foi também em um ato de resistência cultural que, quase nove décadas depois do 8 de Março, Dia Internacional da Mulher, instaurado em 1909 que, em 1992, foi instaurado o Dia Internacional da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha, celebrado a cada 25 de julho desde então. Voltaremos a falar por aqui contigo, Lélia (in memoriam), em julho próximo, honrando o seu legado. Por causa de você, Lélia Gonzalez, nos sabemos mulheres negras amefricanas. Por causa de você, conseguimos nomear, visualizar e instaurar importantes estratégias de resistência cultural. O pensar de Lélia Gonzalez presente!
Dione Moura
Professora titular da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília