Os dados do último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do censo da educação superior do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), tornados públicos no ano passado, colocaram em evidência o crescimento de 374% do número de indígenas estudantes no ensino superior do país. Em um comparativo temporal, mostrou-se que, entre 2011 e 2021, o número de matrículas de indígenas passou de 9.764 para 46.252.
Esses dados devem ser comemorados, pois expressam o resultado de mudanças nas políticas de ingresso no ensino superior, adotadas ao longo das duas últimas décadas por universidades estaduais e federais, além das instituições privadas. É imprescindível esclarecer que essas mudanças foram ocasionadas a partir da luta e das reivindicações de movimentos sociais negro e indígena, representantes de segmentos historicamente excluídos no Brasil. São, portanto, políticas que nascem da organização e articulação de uma parcela da população que, até recentemente, não era contemplada com legislações específicas e políticas públicas voltadas aos seus direitos. Como instrumentos de reparação histórica, essas políticas contribuem para a construção de justiça social em nosso país.
Nesse contexto, destaca-se a Lei nº 12.711/2012, conhecida como Lei de Cotas, que prescreve a reserva de vagas em instituições federais de ensino superior para segmentos sociais específicos, como os povos indígenas. Esse pode ser entendido como um marco na consolidação de direitos relacionados à educação, pois serve de parâmetro para a construção de outras políticas específicas elaboradas em diferentes espaços universitários.
Embora tenhamos muito a comemorar, muitos também são os desafios para uma dimensão tão relevante quanto o acesso às instituições de ensino superior por parte dos estudantes indígenas. O Programa Indígena de Permanência e Oportunidades na Universidade (Pipou), idealizado e realizado pelo Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), vem identificando alguns: dificuldades financeiras; ausência de estratégias de acolhimento e acompanhamento acadêmico específicos para um público multilingue; distância de seus territórios e parentes; desafios emocionais ligados à saudade; adaptação a contextos socioculturais muito diferentes e exposição a manifestações explícitas de preconceitos e racismo, entre outros.
De um modo geral, a partir das análises que o programa vem desenvolvendo, os índices de evasão de estudantes indígenas continuam altíssimos, cujas causas parecem revelar, em considerável parte, o arraigado racismo estrutural presente em alguns espaços acadêmicos, assim como na sociedade brasileira como um todo.
Há ainda muito a ser construído e desconstruído, especialmente quando nos deparamos com a complexidade do reconhecimento dos povos indígenas como cidadãos capazes de transitar entre dois mundos, o do território indígena e das instituições de ensino superior, sem perder as suas identidades e seus conhecimentos. Muitos questionamentos são feitos nesse sentido e a falta de informação de grande parte da população sobre os modos de vida e as ciências dos povos indígenas acarretam em formulações de ideias e práticas preconceituosas, que precisam ser combatidas a partir de um amplo diálogo social.
Esse diálogo social deve contar com as vozes dos indígenas estudantes que, nesse processo de ingresso no ensino superior, vêm se organizando em coletivos no âmbito local e nacional. O Encontro Nacional dos Estudantes Indígenas (Enei) é a maior dessas organizações, tendo tido sua primeira edição em 2013.
O próximo Enei será de 12 a 16 de agosto, na Universidade de Brasília, e prevê a continuidade das discussões das edições anteriores, como acesso e permanência no ensino superior, acesso à saúde, direitos indígenas e pesquisas indígenas científicas. Atualmente, a principal reivindicação do movimento indígena estudantil é tornar o Programa de Bolsa Permanência, do Ministério da Educação, uma política pública de Estado.
Nota-se que os desafios da conclusão dos cursos para os indígenas estudantes são inúmeros e que só será possível superá-los com a ampliação de ações afirmativas de educação que levem em consideração os contextos específicos dos povos indígenas.
Iniciativas como a do Pipou, inicialmente impulsionado com recursos da Vale e, atualmente, contando com apoio de outras instituições, colaboram com os indígenas que querem se formar no ensino superior. Os atuais 100 bolsistas do programa, presentes em 19 instituições de ensino superior de diferentes regiões, recebem uma bolsa de estudos mensal de R$ 1,2 mil e um notebook, e participam de atividades de escrita acadêmica e formação política.
O Pipou representa um esforço da sociedade civil que se soma ao do movimento indígena para a efetiva ampliação da presença indígena no ensino superior. Que programas assim sirvam de inspiração para a construção de outras iniciativas e, sobretudo, de políticas públicas de ampla abrangência que promovam a permanência plena de indígenas estudantes no ensino superior, contribuindo para que eles consigam atravessar os desafios de suas trajetórias acadêmicas com apoio e escuta.
CAMILA BOLDRIN BELTRAME - Antropóloga e assessora do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN); IURY DA COSTA FELIPE - Indígena Magüta - Tikuna, antropólogo e assessor do ISPN, JOÃO GUILHERME NUNES CRUZ - Antropólogo e coordenador do Programa Povos Indígenas do ISPN.