Arthur Mello*
No marco dos 60 anos do golpe militar de 1964, é fundamental percorrermos a nossa trajetória recente e resgatarmos as principais tentativas de apuração de fatos que marcaram essa página infeliz da nossa história, como bem definiu o cantor e escritor Chico Buarque.
No final de 2011, foi instituída a Comissão Nacional da Verdade (CNV), com o objetivo de investigar violações de direitos humanos entre 1964 e 1985, durante a ditadura brasileira. Sob o governo da ex-presidente Dilma Rousseff, durante dois anos a Comissão da Verdade coletou depoimentos, fez a análise de documentos e gerou um relatório de mais de 4 mil páginas com informações detalhadas sobre quem foram as vítimas das prisões arbitrárias e torturas, informações sobre os desaparecimentos forçados e os assassinatos perpetrados pelo Estado brasileiro durante o período.
Foram também identificados os responsáveis pela violência, incluindo militares, policiais e agentes de segurança. O documento contém uma extensa análise das práticas violentas e de perseguição adotadas pelo Estado. Por fim, faz recomendações para prevenir a repetição de tais abusos no futuro, o reconhecimento do envolvimento das Forças Armadas pelas violações dos direitos humanos, e que os responsáveis por cometer crimes contra a humanidade respondam na Justiça.
Na época da divulgação do relatório final, em dezembro de 2014, a comissão carregava o legado de fortalecer a memória, a promoção da verdade, ampliar o debate público sobre o período da ditadura e sensibilizar a sociedade brasileira sobre a importância da democracia na sociedade para a proteção dos direitos civis.
Apesar dos avanços alcançados pela Comissão da Verdade, é importante ressaltar que muitos dos responsáveis pelas violações de direitos humanos durante o regime militar não obtiveram a devida responsabilização perante a Justiça. Além disso, a comissão esbarrou com as dificuldades de acesso aos documentos oficiais e com a resistência de alguns setores militares em colaborar com as investigações.
Nos últimos anos, o governo Bolsonaro elevou a data do golpe a um evento comemorativo, trazendo repúdio pela sociedade civil, imprensa e outros setores. Hoje, 31 de março de 2024, marco dos 60 anos do golpe, e prestes a completar uma década da finalização do relatório da Comissão da Verdade, novamente em um ciclo democrático, com um presidente eleito em contraponto ao autoritarismo e à extrema-direita, choca não apenas a estagnação, mas, sobretudo e contrariando todas as expectativas, o recuo.
Nesta data, por opção, por parte do governo, permanece a indiferença quanto a uma reflexão crítica sobre esse período de (des)comemoração. Um silêncio ensurdecedor aos comprometidos com a democracia, às agendas da campanha, e, sobretudo, às vítimas da ditadura.
Dizer que a memória do golpe de 1964 deve ficar no passado e que ele "não deve ser remoído" é inconcebível, sobretudo na atual conjuntura, quando, em 8 de janeiro de 2023, estivemos novamente envoltos a uma tentativa de golpe. O que reforça que a memória e a devida responsabilização são componentes vitais para fortalecer a democracia.
Diferentemente da Comissão da Verdade, instaurada 30 anos depois da redemocratização, as instituições democráticas mostraram resiliência e agilidade em responder ao fatídico 8 de janeiro. O relatório da CPMI que investigou os ataques apontou os envolvidos e pediu o indiciamento do ex-presidente Jair Bolsonaro, e ainda esperamos a devida responsabilização. Também no documento, há recomendações para coibir novos ataques à democracia, muitas delas propostas pela sociedade civil, por meio do Pacto pela Democracia.
Tanto o golpe de 1964 quanto os eventos de 8 de janeiro evidenciam uma tentativa de desestabilizar e subverter o significado da democracia no país, além de corroer, por meio de ataques direcionados, o sistema de freios e contrapesos — os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Se há brechas em que é possível elevar as vozes do autoritarismo, é preciso e urgente, agora, pavimentar os caminhos para fortalecer a democracia tanto no presente quanto ao longo prazo.
O Pacto pela Democracia tem trabalhado para promover uma agenda permanente pela defesa do Estado Democrático de Direito, a agenda Democracia Forte, que consiste em um compromisso entre poderes, imprensa e sociedade civil. Nessa agenda, memória, verdade e justiça estão incluídas como um caminho necessário para promover e ampliar a democracia, e, assim, obter um poderoso antídoto para que nunca mais aconteça.
*Coordenador de advocacy do Pacto pela Democracia
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