Tatiana Guimarães Ferraz Andrade - Revoluções econômicas e mudanças tecnológicas estão, cada vez mais, alterando padrões sociais e transformando as relações de trabalho em escala global. A economia, em sua fase pós-globalização, passou a ser compartilhada. O binômio “trabalho autônomo” versus “trabalho subordinado” não é mais suficiente para abarcar todas as relações de prestação de serviços. Embora em franca ascensão, o novo modelo de negócio da chamada Gig Economy, baseado em trabalho sob demanda, ainda causa estranheza aos legisladores e operadores do direito. Muitos ainda tratam as mudanças com resistência, atrelando a — mais do que necessária — garantia de direitos e de seguridade à existência de vínculo empregatício. Há um desafio posto: que essas novas relações de trabalho não fiquem submetidas a uma Justiça antiga, incapaz de se atualizar diante de novos fatos sociais.
O surgimento do trabalho intermediado por plataformas é o exemplo mais recente dessa quebra de paradigmas: provocou o rompimento dos parâmetros até então utilizados pela doutrina e pela jurisprudência para diferenciar o trabalho subordinado do autônomo. A tipificação desse novo modelo de trabalho é uma dificuldade mundial, mas países com legislações mais flexíveis se anteciparam em criar alternativas para atender a todos os trabalhadores, ampliando o escopo do direito do trabalho. Enquanto isso, na visão brasileira, se um trabalhador não puder ser declarado empregado, de acordo com o artigo 3º da Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT, será automaticamente classificado como autônomo.
O contexto trabalhista de 1943, ano em que foi promulgada a CLT, era completamente diverso do cenário que se apresenta 80 anos depois. É cômoda a tendência de se enquadrar essas novas relações na CLT, como se nada tivesse mudado no mundo do trabalho. É urgente reconhecer novas tipologias contratuais e alargar o escopo da lei, deixando de lado velhos dogmas que oferecem proteção legal apenas àqueles que sejam enquadrados em um padrão de subordinação tradicional. É promissor o abandono do viés pejorativo hoje contido no termo “uberização” do trabalho, que afasta operadores do direito e legisladores da tarefa de pensar o novo, para que se tenha disposição para regular a nova realidade de forma eficiente e responsável. Enquanto não houver definição sobre a natureza jurídica do trabalho intermediado pelas plataformas, com atenção às peculiaridades dessa nova forma de ocupação, o trabalhador seguirá privado de direitos como a seguridade social.
Estabelecer vínculo empregatício de forma arbitrária inviabiliza a operação de uma vasta e essencial rede diversificada de prestação de serviços, e de um setor responsável por uma parte relevante da economia brasileira. É cada vez maior o número de cadastrados nos aplicativos, seja em busca de renda extra, seja como ocupação principal. Um levantamento feito pelo IBGE, divulgado no fim de 2023, mostra que 1,5 milhão de pessoas declararam gerar renda por meio de aplicativos em 2022.
Com tamanha importância, a Gig Economy apresenta ainda um segundo desafio: o direito à representação sindical, garantido pela Constituição Federal. Por se tratar de uma ruptura com as formas tradicionais de trabalho, a “nova economia” transforma a ideia de categoria. É preciso reconhecer esses novos perfis e garantir enquadramento formal às inovações que a Gig Economy traz. Junto ao surgimento de novos modelos de trabalho, surgem formas de atuação sindical, com significados diferentes das atuações mais tradicionais.
O direito do trabalho evolui ciclicamente. Estamos diante de uma nova oportunidade de adaptação. A votação, pelo STF, da repercussão geral no caso de avaliação de vínculo entre motoristas e plataformas tende a pacificar o cenário jurídico ao reconhecer uma nova forma de trabalho. A partir disso, o Congresso deve exercer o protagonismo que lhe é próprio para definir as bases da relação entre as partes para além do escrutínio sobre a sua natureza jurídica. É anacrônico ignorar as mudanças no mundo do trabalho, as consequências jurídicas e econômicas de tal ação. Há que se regular as novas relações, de modo a conceder proteção mínima para todas as formas de trabalho. Disso dependem os direitos individuais, os direitos coletivos desses trabalhadores e a continuidade do desenvolvimento econômico do país.
Mestre e doutora em direito do trabalho pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, professora na Universidade Presbiteriana Mackenzie, professora convidada na Future Law, pesquisadora no GETRAB-USP*
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