Cristovam Buarque*
O artigo de Luiz Carlos Azedo publicado no Correio Braziliense no último domingo, 17/3, nos provoca a refletir sobre a farsa de certos gestos políticos que tentam repetir fatos históricos. A tentativa de golpe no fim do governo Bolsonaro é um exemplo claro dessa interpretação como farsa: ficará como ópera bufa, mas por muito pouco ela não teve sucesso, e o simples fato de ter sido tentada, demonstra a fragilidade da democracia. Porque, depois de 40 anos, o regime democrático ainda não tomou as medidas necessárias para vacinar as Forças Armadas contra o vírus golpista que a contamina desde o início da República.
Durante todo o período de 2019 a 2022, estivemos sob ameaça de golpe. Em nenhum momento as FFAA deixaram de se imiscuir na política, assumindo cargos civis no governo, dando respaldo ou se omitindo diante de manifestas intenções golpistas. Prestou-se a diversas ações que o presidente tomou visando levantar suspeitas sobre a legitimidade das urnas, como forma de não reconhecer o resultado que não lhe fosse favorável. O golpe dificilmente teria sido barrado, se no lugar de capitão desastrado e incompetente, o presidente fosse um general brilhante intelectualmente, com liderança e articulado politicamente que tivesse dado ordem a um coronel para prender o general que o ameaçou. Provavelmente não duraria 21 anos, talvez apenas alguns dias até mostrar sua cara de farsa, mas o desastre já teria ocorrido. Se ao redor do capitão estivessem "golberys" e "geisels", se o presidente dos EUA ainda fosse Trump e o STF tivesse sido omisso, o resultado teria sido outro. O que nos salvou foram as pessoas físicas de alguns generais legalistas, não a estrutura da instituição, que continua a mesma, apesar dos 40 anos de democracia.
O único gesto de enfrentamento da questão militar foi a criação do Ministério da Defesa, pelo presidente Fernando Henrique. Mas se adotou um nome, sem se adotar um espírito novo. O ministro é civil, mas a tropa continua sem respeitar os civis, até por nossos erros, privilégios, falta de espírito público, mordomias, corrupção. Os ministros da Defesa não comandam as Forças Armadas em nome do presidente, apenas representam as três Forças junto ao governo. Nenhum dos presidentes da democracia pareceu liderar as FFAA, apenas conviver com elas como se fossem uma instituição separada da estrutura republicana. Fora a denominação do ministério, nenhuma vacina democrática foi adotada para mudar o espírito das FFAA. A última vacina democratizante foi aplicada durante o regime militar, quando o presidente general Castelo Branco determinou o limite de tempo para cada comandante ficar na ativa.
Se não enfrentarmos a questão militar que pesa há décadas sobre a República, um dia, vão dizer que a farsa foi a democracia, não a tentativa de golpe. Os sete presidentes civis e milhares de parlamentares passaram a ideia de temer a farda. Não se puniu os crimes durante a ditadura, não se modificou a formação dos soldados. A democracia que teme os uniformizados é fraca e sujeita às tentações de golpe. Agora, a operação de punição vem dos tribunais, não do Executivo ou do Legislativo.
Pena que não seja apenas a questão militar. Apesar de seus avanços, a democracia brasileira não enfrenta estruturalmente a questão social: a pobreza e a desigualdade, o caos urbano, a concentração de renda, a violência, nem a última trincheira da escravidão, que é a desigualdade no acesso à educação; nem a questão econômica: baixa produtividade, custo Brasil, falta de competitividade; nem a questão republicana: abolição dos privilégios, distribuição de renda, estabilidade jurídica, fim da corrupção, reforma política.
O jornalista Azedo nos lembra que esse golpe foi uma farsa, mas nos faz pensar que a farsa pode ser muito maior, pode ser resultado de uma democracia que ainda falseia, não cumpre sua função na construção de um país sem risco de Forças Armadas golpistas, sem pobreza, sem desigualdade, onde, ao nascer, cada criança tenha garantido o acesso à educação com a máxima qualidade, que lhe ensine inclusive a ser comprometida com democracia verdadeira e sólida, sobretudo no caso de ela escolher a carreira militar.
O golpe na democracia decorre do golpe dado pela democracia ao não enfrentar as questões que a ameaçam diariamente, subliminarmente, discretamente, estruturalmente, até levar a tentativas como essa última frustrada.
Cristovam Buarque - Professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)
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