ARTIGO

A censura ao livro O avesso da pele

Na contramão das críticas, o autor Jeferson Tenório ganhou o apoio público de entidades como a Academia Brasileira de Letras (ABL) e de vários escritores e leitores

Assim como qualquer forma de arte, a literatura deve ser livre -  (crédito: Maurenilson)
Assim como qualquer forma de arte, a literatura deve ser livre - (crédito: Maurenilson)

A polêmica em torno do livro “O Avesso da Pele”, do escritor Jeferson Tenório, nos leva a algumas reflexões. O título gerou uma série de debates acalorados depois que a diretora de uma escola em Santa Cruz do Sul (RS) pediu ao Ministério da Educação o recolhimento dos exemplares distribuídos para alunos do ensino médio, sob alegação de que a obra é inadequada por conter “vocabulário de baixo nível” e descrições de cenas de sexo impróprias aos estudantes.

Um vídeo da diretora viralizou nas redes sociais e deu-se início a uma explosão de comentários distorcidos, que acabaram propagando a desinformação. Dezoito municípios gaúchos anunciaram a remoção da obra, mas poucas horas depois a Secretaria de Educação do RS emitiu nota desautorizando a decisão. No entanto, escolas do Paraná, Goiás e Mato Grosso do Sul decidiram retirar o livro de suas redes de ensino.

Na contramão das críticas, o autor Jeferson Tenório rapidamente ganhou o apoio público de entidades como a Academia Brasileira de Letras (ABL), Câmara Brasileira do Livro (CBL) e Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL); além de leitores, professores, políticos, personalidades e mais de 250 escritores, entre eles, Djamila Ribeiro, Maria Homem, Mia Couto, Ziraldo e Conceição Evaristo. Na avaliação do movimento, os ataques são preocupantes do ponto de vista democrático.

É essencial esclarecer que os assuntos principais do livro em questão, que recebeu o prêmio Jabuti em 2021, são o racismo, a violência policial e a morte de pessoas negras, problemas estruturais em nosso país que podem e devem ser discutidos em sala de aula. Também é relevante observar que as críticas à obra têm se baseado em uma interpretação descontextualizada de trechos isolados da história.

Sob esse aspecto, o próprio autor Jeferson Tenório disse, em entrevista à TV Brasil, que o texto traz “algumas cenas e frases que justamente são usadas para agredir pessoas negras, pessoas periféricas. Essas frases e cenas que a diretora elencou são na verdade como as pessoas negras são vistas, como são sexualizadas, violentadas na sociedade. Talvez, quando o livro traz isso de maneira contundente, cause um incômodo", ressaltou.

Outro ponto que devemos atentar é sobre os comentários equivocados em torno do processo de seleção de um livro para o Programa Nacional do Livro e do Material Didático – PNLD. As obras literárias e didáticas distribuídas gratuitamente pelo PNLD passam por um rigoroso processo de avaliação técnica e também por uma produção editorial de excelência. Após a seleção do programa federal, os títulos são escolhidos pelos professores. Ou seja, as unidades de ensino recebem uma lista e têm a oportunidade de optar pelas obras que querem receber. Além disso, é disponibilizada uma senha para que os gestores escolares acessem o conteúdo completo e não apenas a capa e um resumo de cada título.

Por fim, cabe trazer reflexões sobre a liberdade de expressão artística e cultural, que está prevista na Constituição brasileira. Assim como qualquer forma de arte, a literatura deve ser livre.

Desde os tempos antigos até os dias atuais, censurar livros tem sido uma prática recorrente ao redor do mundo. A noção de censura remonta a épocas em que o controle da informação era uma ferramenta crucial para governantes, líderes religiosos e outros detentores do poder.

Na Roma Antiga, autoridades imperiais frequentemente proibiam a publicação e distribuição de obras consideradas subversivas ou contrárias aos interesses do Estado. Durante a Idade Média, a Igreja Católica desempenhou um papel significativo na censura de livros.

No século XX, regimes totalitários como os de Hitler, na Alemanha, empregaram a censura de livros como uma ferramenta para controlar o pensamento e a opinião pública. Livros considerados subversivos eram queimados em praças públicas.

No Brasil, em 1937, durante o primeiro governo Vargas, os escritores Jorge Amado e José Lins do Rego também tiveram obras apreendidas e queimadas em público por alegada "simpatia com o comunismo". No período do regime militar, o Ato Institucional 5 endureceu a censura na imprensa.

A abertura política do país trouxe de volta a liberdade de expressão, ainda que tenhamos de nos deparar, em diversos momentos da história, com situações como a recente censura ao livro “O avesso da pele”.

Que fiquemos atentos. Como diz Ray Bradbury, no livro Fahrenheit 451, “existe mais de uma maneira de queimar um livro. E o mundo está cheio de pessoas carregando fósforos acesos”.


Isa Colli, jornalista e escritora

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postado em 11/03/2024 06:00 / atualizado em 11/03/2024 06:00
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