ARTIGO

Viver e deixar morrer em Brasília

A vida urbana é um permanente nascer e morrer de práticas, de paradigmas, de espaços

Mesmo com tantas mudanças, os elementos distintivos de Brasília continuam aí, visíveis a quem quiser ver -  (crédito: Maurenilson Freire)
Mesmo com tantas mudanças, os elementos distintivos de Brasília continuam aí, visíveis a quem quiser ver - (crédito: Maurenilson Freire)

Brasília não é um sítio arqueológico. É uma metrópole pulsante, onde há gente nascendo, vivendo e morrendo todos os dias. E não é apenas a demografia que está em transformação. A vida urbana é um permanente nascer e morrer de práticas, de paradigmas, de espaços. Um dia, há muitos anos, nasceu o metrô. Na década de 1970 nasceu Ceilândia. Antes, as quadras 400 do Plano Piloto. Em algum momento nasceram Taguatinga, o Gama, o Núcleo Bandeirante, Planaltina, as demais Regiões Administrativas.

Todos esses nascimentos possuem algo em comum: não eram parte do plano original de Lucio Costa. Ainda assim, fazem parte da nossa história. Apesar das contradições inerentes a toda realização humana, é assim que o Distrito Federal se desenvolveu, é assim que ele é — esta metrópole real que chamamos de lar com todas as suas dores e delícias.

Mesmo com tantas mudanças, os elementos distintivos de Brasília continuam aí, visíveis a quem quiser ver. Na década de 1960 ou na de 2020, a Capital segue sendo uma cidade sem paralelos, única, marcante. Por isso se tornou Patrimônio Mundial em 1987. E continua a ser em 2024 porque na transformação permanente que vive como metrópole foi capaz de preservar o que tem de mais essencial e distintivo do projeto original: a característica de cidade-parque, suas distintas escalas, as proporções edilícias e urbanas.

Nesse jogo de nascer, viver e morrer urbano é dever de todas as gerações, em todos os tempos, refletir sobre o que deve ser mantido, o que deve ficar no passado, o que precisamos criar no presente, e o que esperamos do futuro. Mas as opiniões nem sempre (ou nunca) são consensuais. De tempos em tempos surgem polêmicas sobre o que deve ser preservado e o que precisa ser transformado.

Uma das polêmicas recorrentes se refere ao limite de velocidade no Eixão (codinome "da Morte"). Recentemente o Ministério Público ajuizou ação para impor ao GDF a redução de 80 para 60 km/h na via. Argumentos a favor da redução não faltam: a OMS recomenda o limite de 50 km/h para trechos urbanos — a probabilidade de morte em casos de acidentes ou atropelamentos diminui exponencialmente na medida em que a velocidade diminui, enquanto o tempo de reação de motoristas é potencializado. Além disso, a redução da fluidez do trânsito é de baixa magnitude. Considerando tráfego livre, o tempo para percorrer o Eixão de ponta a ponta não aumentará em mais de quatro minutos. Muito mais impactante para a falta de fluidez do trânsito é o péssimo serviço de mobilidade urbana, que gera congestionamentos por toda cidade enquanto submete usuários a longa espera, tarifa alta e desconforto.

Reduzir velocidade, contudo, não ataca a raiz do problema: a 80 ou 60 km/h, a travessia pela superfície, nos moldes atuais, seguirá sendo um risco e uma barreira para pedestres. A região compreendida entre os "eixinhos" leste e oeste - inclusive suas passagens subterrâneas — pode e deve ser repensada. Não faltam propostas para as passagens, das mais "cosméticas" às mais estruturais: da melhoria de iluminação, segurança, limpeza e instalação de quiosques e comércio, a uma solução mais radical: sua eliminação e aterramento, pedestres a cruzarem o Eixão na superfície, em faixas devidamente semaforizadas, as duas mãos de tráfego separadas por canteiro central arborizado — uma verdadeira avenida urbana, a emular belos exemplos de tantas cidades brasileiras!

Manter o rodoviarismo e a priorização dos carros sobre quaisquer outros usos da cidade — inclusive sobre a vida das pessoas — não é nem nunca foi elemento distintivo e fundamental de Brasília. Ao contrário: são muitos os exemplos no país de cidades que foram transformadas a partir do rodoviarismo, resultando na redução da vitalidade dos espaços públicos, no fechamento de comércios de rua, no aumento de acidentes e atropelamentos, na deterioração da segurança, com espaços cada vez mais vazios, onde os transeuntes sentem solidão e medo. Cenário comum em Brasília que, sem dúvida, não é o que a torna diferente e única.

Não, não é o rodoviarismo que deve ser preservado: na escolha entre o que morrer, o que viver e o que nascer em Brasília, é preciso deixar falecer seus traços arcaicos e elitistas, deixar viver quem transita e ocupa a cidade, fazer nascer um novo momento em nossa história — aquele em que a vivacidade urbana agrega força simbólica e potencializa a qualidade urbanística da metrópole como um todo. Que seu centro, seus bairros, e os municípios do entorno sejam articulados e transformados, que seus potenciais possam ser explorados, que as oportunidades não sejam interditadas e que a urbe se humanize mais e mais.

Lucio Costa certa vez escreveu sobre a rodoviária, tomada de gente e comércio popular, que "o sonho foi menor que a realidade. A realidade foi melhor, mais bela". Poderíamos acrescentar: a realidade pode ser ainda melhor e mais bela. E sempre é tempo de sonhar.

Raphael Sebba

Sociólogo, mestre em arquitetura e urbanismo pela Universidade de Brasília

Frederico de Holanda

Arquiteto, PhD em arquitetura, professor emérito da Universidade de Brasília

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Raphael Sebba, Frederico de Holanda - Opinião
postado em 10/03/2024 06:00 / atualizado em 10/03/2024 06:00
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