CRISTOVAM BUARQUE
Professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)
Minha geração foi formada pelas ideias humanistas dos grandes pensadores judeus e tomou conhecimento do mundo vendo as fotos de campos de concentração e assistindo à luta dos sobreviventes para criar um novo país que servisse de porto-seguro para os judeus do mundo, perseguidos ao longo de séculos. Acompanhamos o heroísmo de um grupo de líderes, quase todos socialistas, lutando para transformar um minúsculo território em uma nação democrática, progressista e igualitária. Apesar do incômodo moral diante da expulsão de palestinos nativos, e do incômodo político diante da arrogante superioridade dos israelenses sobre os palestinos, a implantação de Israel parecia uma vitória da humanidade, bastando descobrir a fórmula para a convivência entre israelenses e palestinos em dois estados diferentes.
O horror ao terrorismo ficava restrito a grupos isolados, como o Lehi judeu e o Hamas palestino. A repulsa aos crimes deles, na violenta estratégia que escolheram para defender seu respectivo país, não contaminavam o respeito pelos povos judeu e palestino, nem eliminava a possibilidade de dois estados com dois povos convivendo em paz, apesar de gestos terroristas esporádicos perpetrados por seus extremistas. A "lógica Hamas-Netanyahu" está mostrando a impossibilidade dessa convivência.
O ato terrorista de 7 de outubro, assassinando e sequestrando israelenses, e a guerra consequente com o massacre e a inanição do povo palestino, a destruição de Gaza e a perseguição aos palestinos na Cisjordânia, onde cada habitante é visto como inimigo, e cada israelense obrigado a viver cercado e protegido por muros e armas, explica a lógica de Netanyahu de que a segurança de Israel depende da expulsão do povo palestino ou sua absoluta subordinação aos israelenses, e também a lógica do Hamas de que a criação de um estado palestino passaria pela destruição de Israel.
Nessas condições, o sionismo fica incompatível com o humanismo que vem do pensamento de judeus. A partir de outubro de 2023, os judeus, antes identificados com os nomes de Jesus, Espinoza, Marx, Freud, Einstein, Arendt, Sabin, Sachs, Morin e outros que fundaram nossa maneira de entender o mundo e querer fazê-lo melhor e mais belo, passaram a ser identificados pelo nome Netanyahu e de seus ministros.
Há quatro meses, o Correio Braziliense publicou artigo com o título O Hamas venceu, alertando que a violência das forças armadas israelenses ao ato terrorista do Hamas levaria a uma derrota moral e política imediata de Israel e ao crescimento futuro do terrorismo. O evento da semana passada confirmou. A falsa defesa negando que foram mortos por balas de soldados israelenses, mas "apenas" pisoteados em consequência do desespero pela fome provocada por estes soldados, confirma o alerta.
Para alguns, a "lógica Hamas-Netanyahu" justifica os crimes das forças armadas sionistas, outros fecham os olhos aos crimes de terroristas palestinos, mas alguns continuam defensores do humanismo que aprenderam com judeus antigos: nenhum país justifica sua existência se depende permanentemente de armas, apartheid, massacre, inanição forçada de inimigos, nem a criação de um país deve depender de constantes atos terroristas. Ao identificar seu governo com a nação de Israel, Israel com os judeus no mundo e este povo como destruidor do povo palestino, Netanyahu se transformou em promotor de antissionismo e incentivador de antissemitismo, aliando-se à lógica do Hamas.
As cenas diárias do que acontece em Gaza é publicidade contra o sionismo e se transforma em publicidade antissemita para os desavisados ou mal-intencionados, fazendo muitos confundirem um governo fundamentalista com o conjunto de Israel e com o povo judeu. O humanismo não pode deixar que a oposição à barbárie de um governo se transforme na indecência do antissemitismo. Deve recusar a "lógica Hamas-Netanyahu", denunciar os crimes do Hamas em Israel e os de Israel no gueto de Gaza como duas faces, em dimensões desiguais, do barbarismo anti-humanista; separar o sionismo de Netanyahu do pensamento judaico e o terrorismo do Hamas da postura do povo palestino, e acreditar que não vai demorar para a palavra judeu voltar a ser identificada com os grandes pensadores humanistas e não mais com os atuais políticos de Israel.
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