Superquadras subdivididas em blocos, totens que orientam motoristas e pedestres em meio à paisagem repetitiva, arquitetura modernista, vias largas (cidade rodoviarista), arborização pesada. O temperamento frio e distante do brasiliense é outro aspecto evocado por aqueles que veem Brasília como uma cidade distante da realidade das outras grandes capitais brasileiras.
A renda significativamente mais alta do que qualquer outra unidade da federação também deslumbra. Em levantamento recente, o Lago Sul saiu como campeão entre os bairros mais ricos do país. A frota náutica, maior do que a de muitas metrópoles costeiras, beira o inacreditável.
De fato, a capital do país guarda muitas peculiaridades, o que faz com que muitos a achem pouco representativa daquilo que consideramos o arquétipo de cidade brasileira. No entanto, com olhos e ouvidos atentos, vemos que é exatamente o contrário: a capital da República é uma representação máxima do projeto de desenvolvimento do Brasil.
Como maior canteiro de obras do planeta no século passado, Brasília atraiu famílias de todas as regiões do país para que o sonho de Juscelino Kubitschek fosse, literalmente, concretizado. São pessoas que largaram tudo, casa, amigos, familiares, vizinhança, cultura, para tentar uma vida melhor na capital então em gestação. Quem já ouviu pioneiros contando as histórias da viagem de seus locais de origem até o Planalto Central sabe que a missão era nada fácil. Eram dias de pau-de-arara, famílias inteiras dividindo barracos minúsculos, jornadas extenuantes de trabalho, falta de infraestrutura e outros percalços que não foram suficientes para interromper a construção de Brasília.
No entanto, nem mesmo essas jornadas heroicas impediram que o Brasil continuasse sendo o Brasil, mesmo nas remotas e pouco habitadas terras da região central. No início dos anos 1970, milhares de famílias de operários foram removidas da Vila do IAPI, que era localizada onde hoje é o início da EPNB, para Ceilândia. "Peguem suas trouxas de roupas, utensílios e tábuas e vão para bem longe daqui", imagino a ordem.
E foram para mais de 20 quilômetros do centro de Brasília, local onde não havia água tratada, luz elétrica, pavimentação e transporte público quase nulo. No caso da Vila Amaury, submersa pelo Lago Paranoá, o plano era manter um exército de operários para as construtoras até que a água do lago, que subia lentamente, se encarregasse de enxotar naturalmente todos dali. Nem parecia que se tratava de gente: homens, mulheres, crianças e idosos.
São histórias que poderiam ser de qualquer outra grande cidade brasileira. Não há novidades. Brasília é apenas a continuação do sonho daqueles que sempre comandaram o país: higienizada, apartada, cara e inacessível.