Há poucas semanas, o historiador e mestre em políticas públicas de saúde Andrey Lemos compartilhava neste espaço do Correio Braziliense, a luz criadora textual e teatral da peça Makeda, que por meio da narrativa universal para a evolução e construção do ser humano contidas nas histórias de um trisavô para a sua descendente, o qual transmite para a nova geração, a riqueza cultural de seu povo. Por meio das mensagens desses griôs, a menina Makeda e nós vamos identificando a arte e espiritualidade trazidas da África, nos sentidos do nosso viver, com os orixás nos revelando a vida a partir da natureza (o mistério do Oriente se fazendo luz no Ocidente).
Essa luz se amplia, então, ao preparar um artigo para um fevereiro, preenchendo-me com mais significado, porque o carnaval não é só o momento de brincarmos com nossas alegrias e ilusões, e esquecer tristezas. O carnaval, historicamente se tornou uma das frentes, tribuna importante de nosso povo, de redenção, em que sintetizamos nas avenidas e nas ruas das cidades deste país, a nossa capacidade social, cultural e humana gestada nos terreiros, desfilando nossos talentos que contribuem para a perspectiva de um mundo melhor.
Nossos cânticos vêm por meio da beleza e ritmos dos sambas, frevos e maracatus, revelando a África em nós a cada compasso e, juntamente às demais irmãs e irmãos de nosso país identificados com a luta antirracista, mostramos, com um enredo ou um bloco de rua, a influência dos povos de Ketu, Benin e Angola entre tantos outros e das nações indígenas brasileiras, na construção e evolução de nossa sociedade. Um badauê, que em iorubá significa celebração da alegria, pois como diz o compositor Edil Pacheco “a sua riqueza vem lá do passado, de lá do congado, eu tenho certeza”, em verso da canção “Filhos de Gandhi” que se tornou um estandarte de luz e paz na voz de Clara Nunes.
Pelas ruas e avenidas das cidades, desde a Praça Onze, no Rio de Janeiro, a tantos outros redutos que se transformaram em passarelas dos nossos carnavais, dissolvemos a falácia do documento “oficial” de nossa história que por meio do colonialismo escravista e segregador, com sua narrativa de vencedores e vencidos, pela qual nossos povos indígenas, negros e trabalhadores excluídos ficaram invisibilizados, até que um samba, um maracatu, mostrou a riqueza cultural, artística e humana que vem da gente e, assim, suscitando o amor, o afeto e o cuidado inspirados no matriarcado africano, que nos caracteriza quando nos percebemos integrados socialmente.
Aí, vem o gênio de Paulo Benjamin de Oliveira, o Paulo da Portela, que confere ao samba a estrutura que lhe faltava e lhe era tão intrínseca — uma escola, levando para a passarela do samba, no fim dos anos 1930, os setores da agremiação de samba com uma estrutura acadêmica, em que o próprio Paulo da Portela “formou” alunos e entregou diplomas na Comissão de Frente. Dignificando toda a ciência amalgamada nos terreiros e que formou nossa cultura.
Por isso, a alegria no meu peito quando escutei pela primeira vez nos discos de carnaval, o samba-enredo da Acadêmicos do Salgueiro de 1972, Minha Madrinha, Mangueira querida, que traz uma das frases musicais mais lindas da nossa cultura em “sairemos na avenida, pra sambar em passarela”, num jogo melódico mais bonito que já ouvi em minhas experiências musicais. Tudo isso me conecta com minhas raízes negras que despertaram no interior do Rio Grande do Sul, entre 1980 e 1990, e me levaram aos bairros, terreiros, morros, redutos que gestaram o samba, o enredo do meu tempo.
É um ritmo que desconstrói e reconstrói, do tambor que convida ao portal do renascimento, que faz brotar paz no coração e simplicidade no olhar. Quando vejo vovó procurando seu candeeiro nos versos de Dona Ivonne Lara, conectando espaços e tempos numa gira entre Angola e a Bahia, sinto, ouço, canto, danço e rezo, porque encontro meu ser no meu povo. Quando Dona Ivonne convida com seu giro, e Clementina de Jesus apoia a comunidade com sua firme e serena voz, fico leve e feliz, como merece todo ser humano.
Esse é o poder do samba! Um badauê a todos vocês!
MARCOS ALMEIDA PFEIFER, Jornalista e servidor público