Um dos trechos da canção Nos bailes da vida, de Milton Nascimento, diz assim: “Todo artista tem de ir aonde o povo está”. Acho bacana a turnê do Flamengo pelo Norte-Nordeste com passagens por Manaus, João Pessoa, Natal, Belém e Aracaju no Campeonato Carioca, mas chamo atenção para um detalhe: ao contrário das escolas de samba do Rio, o clube mais popular do Brasil está dando as costas ao quintal de casa: as comunidades, os subúrbios, a favela.
O Flamengo terminará a Taça Guanabara, o primeiro turno do Estadual, sem uma exibição sequer nos estádios-raiz da Cidade Maravilhosa. Antes de se tornar o time mais rico do país, velhas diretorias não se importavam de dar um pulinho em Moça Bonita, estádio do Bangu; no Ítalo Del Cima, casa do Campo Grande; na Rua Bariri, cancha do Olaria; no Godofredo Cruz, campo do ex-temido Americano; ou em Conselheiro Galvão, onde Romário trocou socos e pontapés com Cafezinho, ex-lateral-direito do Madureira, no Campeonato Carioca de 1997. Bons tempos.
Para alguns dirigentes “nutellas”, “estádios-raiz” ficaram pequenos diante da nova ordem econômica rubro-negra. Preferem o Maracanã ou no máximo o Nilton Santos, popular Engenhão, ou Raulino de Oliveira, em Volta Redonda. A última exibição fora de uma dessas três praças pelo Carioca foi em 16 de fevereiro de 2022, em Madureira, Zona Norte, contra o tricolor suburbano.
Cartolas alegam que Nova Iguaçu, Portuguesa, Sampaio Corrêa e Bangu eram mandantes neste Carioca. Logo, venderam jogos que seriam na Baixada, na Ilha do Governador ou em Bacaxá para fazer caixa, e o Flamengo cumpriu a tabela. Na verdade, o clube escolheu a dedo onde aceitava jogar e ganhou bom dinheiro nas quatro partidas como visitante: R$ 2,3 milhões. No papel de mandante, o Flamengo recebeu cota de R$ 1,3 milhão na estreia contra o Audax, em Manaus. A planilha fecha em R$ 3,6 milhões. Vale contraponto: o Fluminense não saiu do Estado do Rio e amarga prejuízo de R$ 814 mil.
“Business is business”, dirão os frios e calculistas, mas vale lembrar: a essência do Flamengo está nas comunidades, nos subúrbios onde o time não vai mais. Sim, torcedores da Flórida, nos EUA, e do Norte-Nordeste, dificilmente veem o clube do coração. Mas creia: flamenguistas das comunidades do Rio moram tão perto, e ao mesmo tempo tão longe do Maracanã. Falta dinheiro para bancar o ingresso. A logística é difícil. O clube tem programas sociais para torcedores de baixa renda, mas também há necessidade de os artistas do “Mais Querido” irem aonde o povo está.
O técnico paulista Rogério Ceni teve sensibilidade no Flamengo. Falou da festa na Rocinha, nas favelas ao levar o time ao título do Brasileirão de 2020. “No Rio de Janeiro, existem mais de 700 favelas. É uma inserção social vestir a camisa do Flamengo, você faz parte da comunidade, do grupo. Essa é a grande diferença”. Se o Estadual (ainda) existe, respeite-se o quintal de casa.