» Marcos Fabrício Lopes da Silva, doutor e mestre em estudos literários pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais e jornalista, formado pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub)
Na transição do feudalismo para a sociedade mercantil, houve também uma transição nas formas de governo. O senhor feudal assumia um papel de soberano, que deixou de existir quando da formação dos Estados e da emergência das formas de razão de Estado. O soberano era dono do território, dispondo sobre a vida e sobre a morte das pessoas, podendo fazer morrer dependendo de sua vontade. O governante do Estado, longe de ser um soberano, tinha que fazer viver, pois era preciso cuidar da população. Aí surge a estatística, a análise dos casos, o cálculo dos riscos. É preciso fazer viver e garantir a boa circulação das pessoas e das coisas na organização estatal: eis a tarefa do governante.
Essa perspectiva, ressalta Foucault (1926-1984), faz com que o governamento assuma uma condição biopolítica. A biopolítica corresponde a um conjunto de práticas estendidas ao governo dos vivos (Nascimento da Biopolítica, 1979). Trata-se da direção dos vivos, de governá-los a partir de estratégias e políticas voltadas à condução de suas condutas, ao mesmo tempo em que se torna imperativo instituir práticas de cuidado de cada um para com os outros e para consigo. A temática do cuidado de si, estendida ao conhecimento de si, é muito cara à filosofia que Foucault pretendeu fazer. Em A Hermenêutica do Sujeito (1982), o filósofo francês coloca que ocupar-se consigo mesmo constitui-se uma forma de vida.
A partir dessa afirmação, surge ainda outra potência para o conceito de vida, o da ocupação de si mesmo que deve ser entendida como uma espécie de estética da existência, uma arte de viver. A inserção desse tópico na discussão da governamentalidade é que, ao eleger uma estética para sua existência, o sujeito escolhe modos para o seu governamento e também para o governamento do outro, na medida em que a forma como exerce seu (auto)governo influencia na maneira como se relaciona com outras subjetividades. Assim, o cuidado de si passa a configurar-se como uma das formas de exercício para a construção de uma subjetividade específica.
O alvo do governamento foi assim ressaltado pelo presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, em seu discurso de posse no Congresso Nacional: "A esperança finalmente venceu o medo, e a sociedade brasileira decidiu que estava na hora de trilhar novos caminhos. Diante do esgotamento de um modelo que, em vez de gerar crescimento, produziu estagnação, desemprego e fome; diante do fracasso de uma cultura do individualismo, do egoísmo, da indiferença perante o próximo, da desintegração das famílias e das comunidades. Diante das ameaças à soberania nacional, da precariedade avassaladora da segurança pública, do desrespeito aos mais velhos e do desalento dos mais jovens; diante do impasse econômico, social e moral do País, a sociedade brasileira escolheu mudar e começou, ela mesma, a promover a mudança necessária" (Brasília, 1º de janeiro de 2003).
A sociedade do futuro vai ser a do saber e do conhecimento. Por isso, é preciso fortalecer a democracia horizontalizada, coletivizada e participativa, que considere a relação e o governo que o indivíduo estabelece consigo mesmo e com os outros. Não à toa, faz todo sentido saber a diferença entre governo e Estado. O Estado é toda a sociedade política, incluindo o governo. O governo é principalmente identificado pelo grupo político que está no comando de um Estado. O Estado possui as funções executiva, legislativa e judiciária.
O governo, dentro da função executiva, se ocupa em gerir os interesses sociais e econômicos da sociedade, e de acordo com sua orientação ideológica, estabelece níveis maiores ou menores de intervenção. Assim, governo também não se confunde com o Poder Executivo, composto pelo governo, responsável pela direção política do Estado, e pela administração, como conjunto técnico e burocrático que auxilia o governo e faz funcionar a máquina pública.
Há, no país, uma eterna discussão sobre o tamanho ideal do Estado brasileiro. Os brasileiros já definiram, na Constituição de 1988, que "a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo" (art. 173). Entre períodos de maior intervenção estatal e períodos de redução da sua atuação, e entre teóricos e correntes em defesa de cada uma dessas vertentes, verifica-se que nenhuma delas conseguiu ser totalmente efetiva na realização do bem comum.