EPIDEMIA

Se Aedes aegypti não existisse

Estima-se que nas últimas três décadas cerca de 10 mil brasileiros morreram por dengue

ANDRÉ SIQUEIRA, doutor, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT) e pesquisador do Instituto Nacional de Infectologia (INI)
RIVALDO VENÂNCIO, doutor, professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz/Rio de Janeiro)
RODRIGO GURGEL, doutor Professor da Universidade de Brasília (UnB)

 Já imaginou como seria o mundo se o mosquito da dengue não existisse? Metade da população mundial não estaria em risco de adquirir uma febre debilitante e, por vezes, mortal, 100 a 400 milhões de pessoas deixariam de adoecer todo ano e 40 mil pessoas deixariam de morrer. Infelizmente, esse mosquito existe e está cada vez mais presente nas cidades. No Brasil, o vírus foi registrado em 1981, durante epidemia ocorrida em Boa Vista (RR).

A partir de 1986, as epidemias passaram a ocorrer todos os anos, tornando a doença de maior repercussão sanitária, social e política antes da covid-19. Antes restrita a algumas regiões, o vírus e o mosquito têm se expandido nos últimos anos, causando epidemias em novas áreas, onde a população não tem imunidade e os sistemas de saúde não estão preparados para lidar com o alto número de casos.

Estima-se que nas últimas três décadas cerca de 10 mil brasileiros morreram por dengue. Os dados do Ministério da Saúde de 2024 mostram números alarmantes: 243.721 casos prováveis de dengue até 31 de janeiro, um número quase quatro vezes maior em relação ao mesmo período do ano anterior.

No Distrito Federal, a situação tem sido cada vez pior. Em 2022, foram registrados mais de 70 mil casos de dengue, maior número desde 1998. Se considerarmos apenas as quatro primeiras semanas de 2024, aproximadamente 31 mil casos prováveis foram registrados no DF, um número 11 vezes maior em relação ao mesmo período do ano passado, colocando o DF como a unidade da Federação com o maior número de casos do Brasil. Também chama atenção o crescente número de casos graves e óbitos, que é reflexo da (des)organização dos serviços de saúde em situação de epidemias.

O aumento da temperatura e intensidade das chuvas combinado com graves deficiências de urbanização, incluindo coleta de lixo e fornecimento regular de água para consumo contribuem para o aumento da densidade dos mosquitos e consequentemente a transmissão do vírus. O controle da dengue tem diversos desafios que dificultam seu sucesso. São 4 os sorotipos de dengue, o que significa que um indivíduo pode sofrer com dengue até 4 vezes no decorrer de sua vida.

O controle de Aedes aegypti encontra barreiras pela incapacidade das ações de vigilância em identificar e controlar os criadouros do mosquito e os métodos com inseticida terem alcance limitado, bem como o surgimento da resistência à maioria dos compostos utilizados. A estimativa de que 75% dos criadouros estão em residências mostra a importância da colaboração dos moradores para que haja um controle efetivo, mas não deve eximir de responsabilidade o Estado.

Ações de vigilância contínuas com a participação efetiva de agentes de endemias durante todo o ano são essenciais. Fundamental também é a preparação dos serviços de saúde e seus profissionais para a identificação e manejo adequado dos casos.
Apesar dos esforços na busca de medicamentos efetivos, o tratamento de dengue baseia-se no reconhecimento rápido de casos suspeitos e hidratação adequada no ambiente doméstico ou hospitalar. Demoras e falhas neste processo podem ser fatais e resultam em mortes evitáveis.
A sobrecarga dos serviços de saúde traz outras consequências, afetando indivíduos sem dengue que acabam não sendo tratados adequadamente. Nestas situações, governos declaram situações de emergência e emitem decretos, como foi feito recentemente pelo GDF e por outros estados. O decreto autoriza a aquisição de insumos e materiais e a contratação de serviços no combate à dengue. Insumos e serviços que deveriam ter sido objetos de planejamento antes da eclosão da epidemia.

Devemos lembrar que outros vírus como zika, chikungunya e, mais recentemente, Oropouche vêm surgindo para desafiar os sistemas de saúde e exigem ações mais contundentes de controle e assistência. O surgimento de novas ferramentas, como o método Wolbachia, técnicas de disseminação de larvicidas e novas vacinas combinadas às estratégias de controle já realizadas podem reduzir o sofrimento causado pela dengue às nossas populações.

O fato de que o Brasil é o primeiro país a incorporar a vacina QDenga demonstra a força do Sistema Único de Saúde e da ciência brasileira, cujo monitoramento e acompanhamento propiciarão evidências que informarão os próximos passos no controle da dengue no Brasil e no mundo. Finalmente, num curto período não imaginamos um mundo sem Aedes aegypti, mas é possível viver num mundo sem tantas pessoas adoecendo e morrendo por dengue. Para tanto, é importante a participação intersetorial de gestores públicos, sociedade civil e comunidade científica na adoção das soluções que possibilitarão uma vida mais saudável. 

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