MIRO NUNES e SANDRA MARTINS*
Jornalistas e membros da Cojira-Rio/SJPMRJ e *doutoranda no PPGCOM/UFF
Abdias foi quase tudo nesta vida antes de ter o seu nome escrito no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria, no início de 2024. Dramaturgo, político, ator, artista plástico, professor, jornalista, escritor, mostrou-nos a boa química do entrelaçamento dessas facetas, que possibilitou seu caminhar por estradas abertas pela ancestralidade. Construiu outras mais para nós, seus descendentes na luta pela libertação de negras e negros na diáspora.
Abdias Nascimento viveu o seu tempo no heroísmo — da luta para o coletivo ter o que lhe é de direito, uma vida melhor aqui, agora, em todos os tempos —, semelhante a que outras e outros, antes dele, experimentaram. A liberdade, como parte da vida fixa para cada um(a) de nós, cobra o preço de quem enfrenta, frontalmente, o poder real e concreto. Como seus pares heróis e heroínas, ele não deixou de recolher aos cofres a quantia estabelecida a ser paga para que uma Nação, baseada em justiça e desenvolvimento para negras e negros, de fato, deixasse de ser utopia.
Em 9 de janeiro deste ano, a Lei Federal nº 14.800/2024, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, fez o devido reconhecimento para Abdias Nascimento, inscrevendo seu nome no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria. Junto ao nosso líder maior Zumbi dos Palmares, Abdias está ao lado de outras personalidades que dedicaram suas vidas para a construção de um Brasil verdadeiramente democrático.
Em sua extensa e profícua trajetória, ressaltamos sua atuação como jornalista. Entre 1946 e 1948, Abdias trabalhou no jornal Diário Trabalhista como redator e colunista de mídia impressa — jornais e revistas. Editou duas revistas: a Afrodiáspora, entre 1983 e 1987, e a Thoth, entre 1997 e 1999. Em 1947, filiou-se ao atual Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro — então Distrito Federal. Atitude exemplar para a época, e, possivelmente, corajosa na atualidade, considerando ser difícil encontrar uma ou um responsável por veículo brasileiro de mídia negra registrando-se como associado/a em uma entidade de classe.
Em 2010, a Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial, órgão consultivo do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro (Cojira-Rio), descobriu a ficha cadastral de Abdias no acervo documental da entidade. Esse fato foi o pretexto para — meses depois — nominarmos um projeto ambicioso de intervenção qualitativa na pauta jornalística nacional: o Prêmio Nacional Jornalista Abdias Nascimento. Feliz com a homenagem, o patrono do certame fez questão de gravar um vídeo para defender a importância do jornalismo no combate ao racismo. Infelizmente, ele foi para Orum, em 23 de maio de 2011, aos 97 anos — 13 dias após o lançamento do concurso. Abdias encontrou várias irmãs e irmãos, como sua parceira das duas homenagens: a deputada estadual por Santa Catarina, Antonieta de Barros (no Prêmio Abdias, nominou a Categoria Especial de Gênero).
Muitas são as referências de conquistas advindas de ações geradas ou forjadas pelo/com nosso Herói da Pátria. Registros documentais, oralidade, memória — individual e coletiva, alimento vital da história, que propicia novos olhares, novas apurações, novas fontes, atualizações de dados, questionamentos por serem feitos, outras narrativas que se esbatem com os tidos como oficiais... Um trabalho incansável contra as dobras do silêncio feito pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro), tendo à frente a professora e viúva de Abdias Nascimento, Elisa Larkin Nascimento. Com denodo e dedicação, a vida e obra de Abdias Nascimento não cairão no esquecimento, consolidando-se nos relatos das batalhas pelo avanço do Estado brasileiro por uma sociedade justa e igualitária.
Abdias trilhou o destino que certa canção popular cunhou para pessoas como ele. O herói é "o cabra que não teve tempo de correr". Mas, como coloca o professor e babalorixá Sidnei Nogueira, podemos e devemos retomar ao centro da encruzilhada, analisar o contexto temporalmente, para que se possa vislumbrar as alternativas, escolher o caminho e construir as estratégias de luta. Nesta perspectiva, o recuo, a fuga, torna-se uma estratégia vital para o êxito da peleja, conforme Bona nos ensina: a fuga não é uma atitude vergonhosa, mas uma estratégia de enfrentamento.
Estrategistas, intelectuais, construtores/as de conhecimentos, determinados/as, visionários/as. Sim, certamente, esta é a exata descrição de negras e negros, heroínas e heróis do povo como o é Abdias Nascimento, que sempre viveu assim como continuamos vivendo, antes da paz prevalecer, "em um tempo de guerra".
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