Ação afirmativa

A conferência alimentar e a proposta preta

Os saberes dos povos afrodescendentes não se encerram nos meios de produção, mas também na aplicação de metodologias econômicas ancestrais — abortadas pelo colonizador desde os territórios africanos invadidos por aventureiros europeus

SOLON DIAS, jornalista e coordenador de comunicação do Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana (DF)

Por sua grandiosidade e complexidade, a 6ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, realizada em Brasília, de 11 a 14 de dezembro passado, prometia encontrar a fórmula para "erradicar a fome e garantir direitos com comida de verdade, democracia e equidade". Cansado e afônico, o presidente Lula não pôde participar e deixou de ver o entusiasmo com que os participantes perseguiram esse objetivo.

Em 2021, a indústria de alimentos teve uma receita de quase R$ 1 trilhão e apresentava franco crescimento em um desempenho econômico de encher os olhos do governo federal, principal comprador da produção agrícola brasileira. Crescimento, aliás, que mostrou como resultado algo em torno de 16% a mais em relação ao ano anterior. Mesmo assim, mais de 33 milhões de pessoas estão em absoluto estado de insegurança alimentar grave.

Por outro lado, há uma deliberada tolerância com a produção de alimentos sem qualidade, como os embutidos, que circulam livres — e com autorização oficial — por supermercados, açougues e feiras. É indispensável a redefinição das políticas públicas responsáveis pela produção de alimentos para fazer face às defasagens numéricas que afligem a população. "Erradicar a fome e garantir direitos com comida de verdade, democracia e equidade".

E, aqui, nós dos movimentos negros, que há décadas lutamos por igualdade de oportunidades, mergulhamos no debate civilizatório para ampliar a interlocução das vozes negras, de homens e mulheres dos campos e das cidades, com os representantes dos poderes político e econômico.

Essa articulação que emerge dos campos e das favelas, das comunidades marginalizadas dos grandes centros urbanos e da parcela da população desempregada (lugares em que se concentra uma população majoritariamente negra) briga pela formulação comprometida de políticas públicas que levem em conta — quantitativa e qualitativamente — a aplicação e a difusão de metodologias de produção e distribuição de comida de verdade.

Formas de execução foram testadas à exaustão por organismos internacionais, como a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), por populações africanas (origem de nossos saberes nutricionais no ocidente) e brasileiras, porque, aqui, houve o ajuntamento forçado, na diáspora, das dezenas de perfis sequestrados do outro lado do Atlântico, trazendo o melhor (línguas, conhecimentos, cultura e comida), em um contexto em que se impôs o pior que um ser humano pode suportar, como açoite, desprezo, mais-valia, exploração e saque.

Os povos tradicionais de matriz africana têm muito a oferecer para que o país continue produzindo muito, mas, desta vez, com qualidade. Os saberes desses povos não se encerram apenas nos meios de produção, mas também na aplicação de metodologias econômicas ancestrais — abortadas pelo colonizador desde os territórios africanos invadidos por aventureiros sustentados pelos reinos europeus.

No encontro de Brasília, um total de cinco eixos temáticos nortearam as plenárias: agricultura familiar e camponesa; abastecimento e agroecologia; fomento à participação por meio do Sisan e do Consea — respectivamente, Sistema e Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional —; terra e território, povos indígenas, comunidades tradicionais e racismo institucional; e exigibilidade do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA), formação, pesquisa, monitoramento e agenda internacional.

A proteção e promoção da alimentação adequada e saudável sempre, porém não só, constituíram os afazeres diários ancestrais. Isso está de acordo com o que as instituições de defesa dos povos tradicionais de matriz africana vêm realizando imemorialmente. Os grupos que representam as comunidades negras, sobretudo as que habitam as comunidades tornadas periféricas pelo poder público e desprezadas pelas elites urbanas, falam em segurança alimentar como um direito humano.

Nesse caldo de cultura, o que defendemos são os seguintes ingredientes: reconhecimento das Unidades Territoriais Tradicionais (UTTs) como equipamentos de segurança alimentar; instituição e fomento aos pontos populares de segurança alimentar; sistemas alimentares sustentáveis; e gênero, raça/cor; produção e consumo. Ou seja, os coletivos que chamam à reflexão de todos e demandam providências do poder público, como os povos tradicionais de matriz africana, têm a comida de verdade como modelo de convivência e a segurança alimentar como princípio.

 


Mais Lidas