» Paulo Roque Khouri, professor do IDP e advogado pro bono da ADPF 1.094, que questiona as emendas de comissão
O parlamento vem avançando sobre os poderes do Executivo, tomando para si parcela importante do dinheiro público, na forma de emendas parlamentares. Não bastasse o aumento de quase 200% para o Fundão Eleitoral com votos do PT ao PL, quando se trata de recurso do Orçamento, parte considerável do parlamento vem se colocando como "donos do dinheiro".
Hoje, levando em conta apenas as emendas impositivas individuais (que o Executivo é obrigado a liberar o valor independentemente do quadro fiscal do país), cada um dos 81 senadores tem direito a R$59 milhões, e cada um dos 513 deputados, R$32 milhões. Um aumento de 200% desde 2015 — literalmente, uma farra com o dinheiro dos impostos em um país em que metade da população não tem acesso ao saneamento básico e falta recursos para implantar em todo o território a Escola em Tempo Integral, como determina o Plano Nacional de Educação.
Em relação ao Orçamento, a função do Legislativo sempre foi fiscalizadora, e assim deveria continuar. Mas no caso brasileiro, tem sido diferente. A Constituição foi alterada em 2015 e 2019 para tornar as emendas individuais e de bancada impositivas. Não bastassem as imposições constitucionais, que limitam percentualmente esse tipo de emendas, vão sendo utilizados outros mecanismos para o parlamento colocar a mão no Orçamento e permitir que cada parlamentar as direcione para suas bases eleitorais.
Foi assim que cresceu a chamada emenda de relator, declarada inconstitucional pelo STF, e, agora, cresce de forma exponencial a emenda de comissão. Neste ano, emendas oriundas do Legislativo excedem 20% das verbas discricionárias do Orçamento da União, o que é, literalmente, uma jabuticaba, pois não existe nada nesse patamar de poder do parlamento sobre o orçamento entre os países da OCDE.
Sob nova roupagem, poucos dias após a declaração de inconstitucionalidade da forma como vinham sendo utilizadas as emendas do relator no Orçamento de 2022, concomitantemente à redução a zero das emendas do relator (RP9), foram potencializadas as emendas de comissões do Congresso. Na prática, essas emendas foram largamente (85%) concentradas em uma única comissão, presidida pelo antigo relator-geral do Orçamento, que deu continuidade à prática.
Quatro vícios fundamentais, observados na utilização das emendas RP9, vêm sendo reproduzidos no uso das emendas RP8 em 2023: concentração do poder formal de destinação dos recursos nas mãos de um parlamentar e obscuridade com relação aos reais patrocinadores da indicação de recursos; as emendas são destinadas a ações orçamentárias genéricas idênticas e sem critérios de definição de políticas públicas; inobservância de critérios populacionais e/ou socioeconômicos para a escolha dos estados e municípios beneficiários dos recursos; e evidência de irregularidades na aplicação dos recursos, com vistas ao atendimento de interesses pessoais dos parlamentares que, de forma obscura, fizeram as indicações.
Por conta desses vícios relatados e da incompatibilidade manifesta com a Constituição, foi proposta perante o STF a ADPF 1.048, pedindo a imediata suspensão da execução das emendas de comissão. O absurdo dessas emendas é tamanho que os parlamentares, sem qualquer escrúpulo, literalmente abandonaram regra interna específica contida no artigo 44 da Resolução do Congresso 01/2006, que diz que devem ser obedecidos "critérios e fórmulas que determinem a aplicação dos recursos, em função da população beneficiada pela respectiva política pública, quando se tratar de transferências voluntárias de interesse nacional".
De igual forma, também os princípios da publicidade e da transparência devem orientar toda a ação orçamentária. O direito à informação pública é tão caro à República Federativa do Brasil que consta, sob outro ângulo, no título "Dos Direitos e Garantias Fundamentais", ao se afirmar que "todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral". Inexistem dúvidas, portanto, sobre a importância da transparência e da publicização de dados para o Estado Brasileiro. A necessidade de publicidade, inclusive, foi instrumentalizada pela Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011), que regula o acesso a informações, como requerido constitucionalmente.
Nenhum critério — nem populacional, nem geográfico, nem de política pública — tem sido levado em consideração para as emendas de comissão. Como as anteriores emendas de relator, é literalmente uma "emenda Pix", que vai direto para a base eleitoral do seu interessado, contribuindo para garantir com recursos dos impostos o sucesso na disputa eleitoral próxima, quando esses recursos deveriam ser aplicados nas políticas públicas indicadas no Plano Plurianual ou na Lei de Diretrizes Orçamentárias, como determina o próprio artigo 165 da Constituição Federal.
Alguns sustentam que esse novo poder que o Congresso tem outorgado a si próprio decorre do próprio custo da democracia. Entretanto, esse custo, se muito elevado (como tem se apresentado ano após ano), a médio prazo pode minar a própria representação política fundamental para qualquer democracia.