»LUIZ EDSON FACHIN, professor do Ceub, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). Alma mater: UFPR
Inicia-se um novo período anual de afazeres no Judiciário brasileiro. Desafios e esperanças se mesclam em direção ao que se almeja. É o porvir a sentinela do horizonte, como o denominou Paul Ricoeur. Tem utilidade destacar, nesse princípio, algumas reflexões, apreensões e perspectivas.
Sabemos que a realização da justiça em si não pode ser uma mera representação abstrata; essa tarefa é profundamente humana, devendo ser fecunda, fonte de potência e de eficácia. O termo "humano" se enlaça com humus, terra; estar rente ao chão, à vida, ao que é próprio da humanidade.
Há uma grande responsabilidade para assumir-se dentro da história, e não da metafísica. A jurisdição é a expressão de uma ética concreta, que se realiza na história que vivenciamos, das situações que acontecem, enfim, simplesmente, do mundo dos fatos, fotografados pela legalidade constitucional. Na jurisdição, o dizer é mesmo um modo de fazer, como se cada palavra fosse uma ação (como escreveu John Austin).
São intoxicantes tanto a temerária leitura política dos fatos jurídicos quanto a rasa leitura politizada das decisões judiciais. Cumpre dar ao direito o que é do direito. Sem censura, com plena liberdade, no convívio com o dissenso e com as diferenças, ao lado da independência e harmonia entre os Poderes. Nada (e ninguém) pode capturar e servir-se do Poder Judiciário. Onde sobra poder falta justiça. Sem embargo, é sabido existir, na concretude das relações sociais, uma zona cinzenta de fronteira entre direito e política, propicia à instalação de conflitos.
O caminho demanda viver segundo a justiça e não vergando ao poder. Bem-aventurados aqueles que têm fome e sede de justiça, proclama o Evangelho praticado pelo papa Francisco, cujas lições sempre estão densamente preocupadas com a humanidade, a paz, a diversidade e a tolerânca. Bem assim com os pés no chão, a obra jurisdicional não é a da mera especulação teórica e, sim, diretamente, daquilo que sabe às pessoas de carne e osso. É o Judiciário, ciente da responsabilidade que o reveste, um sistema de peritos, juízes e juízas capazes de adjudicar estabilidade, segurança e ordenação, matéria-prima da confiança nas instituições da esfera pública, da sociedade civil e do Estado Democrático de Direito.
Das erosões, resíduos ou anomalias no desempenho desse múnus, advém mesmo crises e transformações presentemente experimentadas. É certo que há perguntas e controvérsias interpelantes; problemas complexos não desaparecem com soluções simples, escreveu a professora Letícia Cesarino, e nada justifica que se jogue na sarjeta o melhor e o mais importante: uma missão humana, imperativa.
Para tanto, as garantias da magistratura, a imparcialidade e a independência, estão na ordem do agir. A confiança está fundada na capacidade de captar a realidade e produzir decisões, à luz da lei, que traduzam respostas adequadas, iluminadas pela proteção dos direitos humanos e fundamentais. E o conduto dessas respostas é, por definição, o processo justo e transparente.
É certo que bondade, firmeza e misericórdia também são atributos para quem lida, incessantemente, com as enfermidades da vida social, com os litígios, com as desgraças humanas que se tornam autos de um processo. Nada obstante, juízas e juízes não devem ser satélites da polarização calcificada que assola a vida contemporânea, tampouco artífices do mundo político-partidário.
Que 2024 termine nutrido mais por alentos. E que o porvir nos legue uma configuração sócio-histórica com maior confiança num futuro comum, com mediações suficientes para consensos minimamente estáveis e que consigamos nos afastar do limiar de exaustão.
Para tanto, é dever interrogante o atuar com desembaraço para preservar o direito, as instituições e os valores da legalidade constitucional democrática, gerando ao mesmo tempo esperança, confiança e legitimidade. O futuro, em breve, será testemunha da resposta a ser construída.