FLAVIO CARVALHO BRITTO, advogado
ANDREA GOZETTO, especialista em advocacy e doutora em ciências sociais (Unicamp)
Fernando Sabino escreveu que leis são como vacinas: umas pegam, outras não. Não deveria ser assim, mas, quando nos lembramos que o Brasil tem quase 5.600 casas legislativas, incluindo aí assembleias estaduais e câmaras municipais, talvez devamos até celebrar quando uma lei só fica no papel. Já houve caso de um município que aprovou lei para proibir consumo de melancia, e um outro que determinou a criação de aeroporto para Ovnis. Essa falta de seriedade e comprometimento entrou em nosso folclore; Stanislaw Ponte Preta que o diga.
Apesar de convivermos com esse febeapá, há leis fundamentais que, quando não cumpridas, acarretam graves e, por vezes, irreparáveis danos.Vamos aqui tratar, especificamente, da Lei Federal nº 14.154/2021, que visa ampliar o Programa Nacional de Triagem Neonatal para identificar mais enfermidades — algumas raras — através do teste do pezinho. Passados mais de dois anos, não se tem notícia de medidas efetivas para a concretização da política pública por parte do Ministério da Saúde.
Entre as doenças cujos diagnósticos devem ser disponibilizados nos termos da lei, está a Atrofia Muscular Espinhal (AME), enfermidade que acomete gravemente o sistema nervoso daqueles que, por uma mutação genética, não produzem uma proteína essencial para a sobrevivência de neurônios motores, responsáveis pela transmissão dos impulsos nervosos aos músculos, resultando em progressiva fraqueza e atrofia musculares. Andar, engolir e até mesmo respirar deixam de ser movimentos espontâneos pelo caráter degenerativo da AME. Os sintomas costumam se manifestar muito cedo e progridem de forma dramaticamente veloz, afetando a expectativa e a qualidade de vida. Sob essa perspectiva, a detecção e o tratamento precoces da doença reduziriam significativamente o seu avanço.
Já existem medicamentos eficazes à disposição do SUS, mas o sistema ainda não contempla o amplo rastreamento da doença. Ou seja: há chance de tratamento, mas não há como se chegar ao diagnóstico no momento e forma ideais, justamente por meio do teste do pezinho no recém-nascido. E se hoje o diagnóstico não é disseminado é porque a lei federal está sendo descumprida, mesmo já havendo laboratórios aptos a realizar uma ampla testagem.
A ausência de perspectiva causa particular preocupação àqueles que dependem da disponibilização, pelo SUS, dos testes de rastreamento das doenças previstas na lei. A omissão causa indignação diante da inexistência de impedimento técnico e estrutural à imediata incorporação do rastreamento da AME ao Plano Nacional de Triagem Neonatal (PNTN): tanto o teste do pezinho quanto o teste PCR, que possibilitam uma triagem inicial confiável da doença, já são amplamente difundidos no SUS. Tampouco há óbice jurídico: a Constituição Federal consagra o direito à saúde como direito fundamental subjetivo e dever do Estado, tendo a Justiça já proferido inúmeras decisões assegurando o tratamento da AME custeado pelo poder público.
Esse estado de coisas não pode prosseguir. A falta do diagnóstico precoce — previsto em lei — impede o oportuno controle da enfermidade. A doença, quando já instalada, proporciona um terrível sofrimento para o bebê e sua família, sem prejuízo de onerar pesadamente os cofres públicos, já que o tratamento demanda longos períodos de internação — muitas vezes, em unidades de terapia intensiva (UTIs) —, ventilação mecânica, procedimentos cirúrgicos e demais cuidados.
A situação hoje reside no limbo entre o descaso político e a inércia do Ministério da Saúde. O tratamento, sabe-se, não é barato, mas está disponível pelo Sistema Único de Saúde. A imediata adoção da técnica da detecção via teste do pezinho constitui a solução mais empática e, claro, mais humana.
Enfim, a Lei 14.154/21 tem que pegar. Nossos recém-nascidos agradecem.