MARCELO COUTINHO, professor doutor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e especialistas em hidrogênio verde
Até o século 18, os estudiosos achavam que todos os cisnes eram de plumagem branca. Com a descoberta de um tipo de cisne com penas quase totalmente pretas, o conhecimento sobre essa ave aquática teve que ser reformulado. Desde então, o cisne negro passou a ser uma metáfora para algo que surpreende e transforma tudo. Nassim Taleb foi o primeiro a aplicar a teoria dos cisnes negros no mercado financeiro, sugerindo que eventos imprevisíveis de grande impacto, como o 11 de setembro ou a pandemia da covid-19, mudam radicalmente o jogo entre os atores econômicos. Em 2020, John Elkington publicou o livro Cisne verde, em que transforma o problema potencialmente catastrófico de Taleb em solução ambientalista que nos levaria à sobrevivência da humanidade.
Diferentemente dos cisnes negro e verde, prefiro utilizar a metáfora do cisne cinza para ilustrar o que está em questão. Esse termo é usado para modelagem de áreas cinzentas, que escapam ao que as seguradoras estão mais acostumadas a gerenciar, os cisnes brancos, riscos comuns e previsíveis. A concepção de um cisne cinza sugere eventos observáveis que já estão aí iniciando a transformação — portanto, não são totalmente imprevisíveis e, ao mesmo tempo, não se constituíram de forma plena e muito menos necessariamente regeneradora. O cisne cinza é um cisne negro ainda pequeno que pode crescer, como nos ensina a biologia. Do ponto de vista metafórico, ele poderá se tornar num cataclismo ou numa salvação, a depender de uma série de circunstâncias políticas.
O cisne cinza é o aquecimento global e suas mudanças climáticas. Mexe com tudo, muda expectativas, já prejudica a economia e pode ser um verdadeiro apocalipse, com todas as conotações bíblicas que vão muito além de mais uma crise no sistema financeiro globalizado. Já é um fato comprovado cientificamente, porém ainda parcial em termos de desenvolvimento. Seus desdobramentos são observáveis, sabemos que ele está crescendo e quais são as suas gravíssimas consequências. Por outro lado, temos soluções que podem evitar sua catástrofe global, mas são respostas sustentáveis que encontram enorme resistência de grupos políticos e econômicos muito poderosos.
Foi uma luta para a conferência internacional do clima, a COP28, avançar com um acordo que definitivamente responsabiliza os combustíveis fósseis, deixando-os com os dias contados. Não cairão hoje ou amanhã, mas em alguns anos. No caso da gasolina e do carvão, já devem começar a declinar em 2024. Isso não quer dizer, no entanto, que o cisne verde já nasceu. Muitas outras batalhas estão pela frente e envolvem também setores agrícolas. Há uma grande esperança de que o Brasil seja um lindo cisne verde, mas a realidade é diferente.
O país que que tira o agronegócio do mercado de carbono, que desmata o Cerrado e queima a floresta, que entra na Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP plus), que quer explorar novos poços e bater recordes, que planeja explorar a Foz do Amazonas, que inibe compra de carros elétricos, que subsidia térmicas a carvão, que recompra refinarias, e que termina o ano sem lei do hidrogênio verde e das eólicas offshore, está de fato querendo ser um cisne verde? A verdade é cinza porque enquanto as sociedades do mundo todo clamam pela transição energética, os governos e empresas jogam um jogo cínico só deles, dizendo uma coisa e fazendo outra na prática.
O Brasil é o quinto ou o sexto maior poluidor do mundo, a depender do indicador. Cerca de 75% das emissões de gases efeito estufa no país são provenientes do agronegócio. Nos últimos 20 anos, só a cana-de-açúcar avançou sobre 7 milhões de hectares. Desmatou diretamente perto de 2%, e desmatou indiretamente o restante ocupando terras que eram de outras culturas ou pastagem, que evidentemente foram desmatar em outras regiões do país. Vale notar que a mudança do uso da terra é o segundo maior emissor de carbono no mundo. A própria coalizão global para o hidrogênio verde, da qual o Brasil agora faz parte, reafirmou que o hidrogênio do etanol não será aceito. A nova regulamentação europeia e americana também o excluem da certificação.
O mundo passou em 2023 quase metade do tempo com a temperaturas acima do aquecimento de 1,5 °C. Em 2024, poderemos atingir pelo menos um mês com temperaturas médias acima de 2 °C. Não foi só o Oceano Pacífico que aqueceu por causa do El Niño. O Atlântico também, a ponto de já temerem a desaceleração da corrente oceânica AMOC, que, se vier a acontecer, congelará da Europa à Rússia. O nosso planeta absorve agora 2,2 W/m² mais calor do que no início deste século. O efeito estufa está acelerando, e estamos emitindo ainda mais carbono. Os Estados Unidos e a Europa estão reduzindo suas emissões em -3% e -7,4%. Mas a China e a Índia aumentaram em 4% e 8%. O Brasil andou de lado. Ou seja, esse cisne cinza está crescendo, e não é para assumir plumagem verde.
Tudo de significativo que os fósseis fazem as renováveis podem substituir. O problema da intermitência já foi solucionado com o hidrogênio verde (H2V), que devolve 100% da água e 70% da energia elétrica que consome. Setores essenciais que produzem cerca de 40% das emissões globais, como aço, aviação e transporte marítimo, são melhor descarbonizados com H2V. E quem explora camada pr-sal e manipula energia nuclear tira o hidrogênio de letra. "Sejam fecundos, multipliquem-se, encham a terra e a submetam" (Gênesis, 1, 28). A única forma de cumprir essa primeira ordem divina sem transformá-la em apocalipse é usando vento, sol e água. O hidrogênio, o primeiro elemento de Deus.