ALLAN PAIOTTI, CEO da Cannect, ecossistema de cannabis medicinal, e ex-diretor do Hospital Alemão Oswaldo Cruz
A venda de cannabis medicinal nos Estados Unidos (EUA) deve chegar a US$ 4,23 bilhões até 2026, de acordo com levantamento da Statista, empresa alemã de pesquisa. O montante é similar ao PIB do país de origem da cantora Rihanna, Barbados, que foi de US$ 4,67 bilhões em 2020. O país norte-americano foi um dos precursores na liberação do canabidiol (CBD) para uso medicinal, um dos fatores para que esse mercado atingisse o patamar atual.
A Califórnia aprovou, em 1996, um projeto de lei (PL) que garantia acesso à cannabis para pacientes com HIV e câncer, e atualmente 38 estados norte-americanos têm o uso para fins medicinais liberado. Os EUA classificam o tratamento com CBD como suplemento alimentar isento de prescrição, permitindo a venda em supermercados, lojas de conveniência e até postos de gasolina, um claro excesso ao se considerar o aspecto medicinal.
O Brasil está quase duas décadas atrás da realidade da Califórnia. Com rigor técnico e científico, a liberação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para importação de medicamentos com o princípio ativo só aconteceu em 2015, após grande pressão das famílias de pacientes com epilepsia, que até então só tinham acesso ao tratamento pela via judicial. Hoje, esse mercado movimenta mais de R$ 600 milhões no país, beneficiando cerca de 180 mil pacientes, segundo dados da Kaya Mind.
Em uma atuação corajosa e sem precedentes da Anvisa, a regulação deu um salto desde o final de 2019, quando entrou em vigor a Resolução de Diretoria Colegiada (RDC) 327 para que produtos previamente registrados pelo órgão pudessem ser vendidos em farmácias, com prescrição médica controlada (azul ou amarela). No final de 2020, o acesso aos tratamentos ganhou novo impulso transformador com a entrada em vigor da RDC 335 (atual RDC 660/2022), que define os critérios e os procedimentos para a importação de produto derivado de cannabis por pessoa física, para tratamento de saúde de uso próprio, mediante prescrição de profissional legalmente habilitado.
Embora em maturação, o mercado brasileiro caminha para superar quatro grandes desafios: de acesso, garantindo custo e tempo de entrega viáveis, com o devido controle farmacológico; de engajamento, com acompanhamento médico, monitoramento e controle da evolução clínica, efeitos adversos do tratamento e dosagem terapêutica para garantir efetividade; de educação médica, envolvendo sociedades científicas e ampliação de entendimento da prescrição e reais benefícios da terapêutica; e de regulação, com a aprovação de uma lei federal estabelecendo critérios para os setores público e privado no acesso a tratamentos seguros e de qualidade.
Cannabis medicinal é uma realidade, com milhões de pacientes obtendo mais saúde e qualidade de vida com seu uso ao redor do mundo. Seu princípio de ação, caracterizado pela definição do sistema endocanabinóide, tem grande poder na ativação dos sistemas fisiológicos do corpo humano e demonstra resultados bastante amplos, mas isso não significa que deva ser utilizada para qualquer situação, de forma indiscriminada. Visando a eficácia do tratamento e a segurança do paciente, há que se considerar a necessidade de orientação médica e acompanhamento ativo do tratamento, em sua maioria relacionado a doenças ou condições crônicas como fibromialgia, epilepsia, Parkinson, Alzheimer, stress, burnout ou TDH, apenas para citar alguns exemplos com alto prevalência na população brasileira.
As pesquisas científicas sobre o uso medicinal da cannabis retomaram a cena na última década com estudos robustos publicados em veículos reconhecidos pela comunidade médica. Israel e Canadá saíram na frente, mas, surpreendentemente, o Brasil tem sido reconhecido internacionalmente por seus trabalhos nessa área, com destaque para instituições como a Universidade de São Paulo (USP), de Ribeirão Preto.
Enquanto a experiência norte-americana mostra que é necessário cuidado ao se flexibilizar demais o acesso sem controle e orientação médica, a brasileira vem se tornando referência dentro e fora da América Latina por ser um país com olhar clínico, científico e medicinal para a cannabis. Um mix das duas pode nos fazer avançar substancialmente e melhorar a vida de milhões de brasileiros que podem se beneficiar dessa terapêutica milenar e, ao mesmo tempo, tão nova.
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