MARCELO COUTINHO, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e analista sênior de hidrogênio
O Brasil se recusa a ser aquilo para o qual foi destinado: uma nação próspera aliada à natureza exuberante. O país insiste em crescer queimando suas florestas e óleo diesel. Padre Antônio Vieira foi o primeiro a intuir que o quinto império bíblico viria de onde menos se esperava: Portugal. Fernando Pessoa também pensava o mesmo, sobre um império luso. Todos devem se lembrar de como Daniel decifrou o sonho de Nabucodonosor e a estátua com cabeça de ouro, peito e braços de prata, ventre e coxas de bronze, pernas de ferro e pés de ferro e barro. Babilônia, Medo-Persa, Grécia, Roma e reticências, respectivamente.
Foi o embaixador Luiz da Cunha, no entanto, em memorando secreto a Dom João V, em 1736, que, pela primeira vez, sugeriu que o novo império não ficava exatamente em Portugal, mas em sua extensão colonial ultramar. Para o diplomata, o pequeno país europeu não passava de uma "orelha de terra"que jamais poderia governar o mundo. Foi, então, que nasceu o mito do "Brasil grande" pela primeira vez, antes mesmo de o país existir de fato e de direito, como sempre colocando a carroça à frente dos bois, antes mesmo do parto do seu nascimento.
Eis que dessa cesárea imperial pariu-se precocemente um Macunaíma, o herói sem caráter. E, desde então, ficamos conhecidos como um povo malandro, preguiçoso e libidinoso, encenando um gênero cômico. Se alguém discordar, que brigue com Mário de Andrade e os modernistas, ou com a realidade, num negacionismo tupiniquim que estranhamente se casou nos últimos tempos com o negacionismo climático, ameaçando índios e todos os demais seres humanos, bichos e vidas aqui e além-mar. A agricultura já está sendo afetada, o mar já está subindo, o calor já está perto do limite.
Na era da transição energética, o Brasil teria tudo para ser líder mundial. Nenhum outro país tem metade da energia renovável que dispomos. E, em vez de produzir hidrogênio verde, por aqui se repete a cantilena dos reis do petróleo com a falsa perspectiva de captura e armazenamento de CO². Todas as tentativas disso falharam, e mesmo que essa tecnologia seja melhorada, não captura metano, que vaza desde a extração até toda a cadeia de valor. O hidrogênio azul (fóssil) emite 20% mais carbono do que a pura queima de gás natural ou carvão, e o mesmo que o hidrogênio cinza, o mais poluente de todos.
O conceito que querem aprovar no Congresso Nacional é de um hidrogênio de baixo carbono que de baixo não tem nada. É uma definição frouxa que destoa das melhores regulamentações no mundo, que variam entre 2 kg de CO2 por quilo de H2 na Índia a 3,4 Kg no Japão. Americanos, europeus, canadenses e chineses estão claramente incentivando apenas o hidrogênio verde, mas o Brasil ainda não tem sequer uma lei. As propostas legislativas nacionais acabam beneficiando quem desmata e polui. O projeto de lei menos pior é o que foi aprovado pelo Senado, precisando de correções na Câmara. Mas o que esperar dos deputados se eles sequer mencionaram uma única vez o hidrogênio verde no projeto que leva esse nome?
O espírito da lei dos novos combustíveis deve ser a transição energética e não beneficiar setores que sempre foram favorecidos e continuaram desmatando e poluindo. O mundo desenvolvido quer comprar o hidrogênio verde brasileiro. Só os poderes em Brasília não querem produzi-lo de verdade, em lengalenga indisfarçável. As autoridades federais usam as palavras hidrogênio verde como o marido que dá flores à esposa depois de traí-la o dia inteiro com sua inimiga.
Podemos liderar o mundo com a economia de hidrogênio verde, e ajudar a evitar o agravamento da crise climática. Não deveríamos estar com quem quer perfurar novos poços até no Ártico ou plantar cana e milho na Amazônia. Já estão acabando com o Cerrado. Segurança energética é evitar o que está acontecendo nas cidades. Governador Valadares (MG), por exemplo, ficou recentemente sem luz por três dias por causa de uma tempestade de ventos atípicos que derrubaram linhas de transmissão, deixando a população dormindo nas ruas e nos quintais. Então, não venham dizer que térmicas a carvão ou gás natural dão segurança porque é justamente o contrário. Os apagões estão aí.
Bem depois de interpretar o sonho do rei babilônico, Daniel foi trancado na cova dos leões pelo rei do Medo por causa da sua fé. Babilônia ficou caracterizada na Bíblia como o lugar do erro e da soberba. E a sociedade das economias carburantes também segue com erro e soberba de não querer mudar, não querer aceitar sequer provas materiais do aquecimento global. Essa sociedade insiste em ser a nova Babilônia apocalíptica. Um profeta hoje que nos lembrasse o Armagedom, provavelmente seria isolado por macunaímas de terno e gravata. A verdade, como a fé, incomoda aos reis sem sabedoria. No Brasil, estaria Daniel na cova com as onças-pintadas, mais todos encurralados, e o quinto império de pés de barro tropeçaria em si mesmo. "Esse reino é a pedra que rolou do monte sem ninguém tocar nela, e esmigalhou o que era de barro, ferro, bronze, prata e ouro", - (Daniel 2, 45).
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