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Artigo: Delírio de justiça

A tragédia, provocada pelo rompimento da barragem da Vale em Brumadinho (MG), completa hoje 5 anos. Dezesseis reús foram condenados pela morte de 272 pessoas

Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR)
 -  (crédito: Divulgação/CNJ)
Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) - (crédito: Divulgação/CNJ)

KEYNA PAIVA SILVA LAMOUNIER, psicóloga e diretora da Associação dos Familiares de Vítimas e Atingidos pelo Rompimento da Barragem Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho

Hoje, completam-se cinco anos da tragédia-crime do rompimento da barragem da Vale em Brumadinho. Nossa voz, desde então, tem sido um pedido de justiça. Passados quase 1.900 dias e numa espécie de viagem ao tempo, vamos nos iludir, divagar, devanear, imaginar que a justiça foi feita. Vamos delirar.

No ano 2020, no mês de fevereiro, corrido um ano do rompimento da Barragem da Vale em Brumadinho, tivemos o júri popular daqueles que foram apontados como responsáveis pela tragédia-crime, quando foram assassinadas 272 pessoas. Após a condenação dos 16 réus, o cenário que temos é o seguinte: as famílias que perderam seus entes queridos ainda choram a morte trágica, mas se consolam com o fato de que a justiça foi feita.

A dor da perda ainda continua, mas o sentimento pesado de revolta, angústia e indignação pelos horrores da tragédia vão sendo sobrepostos por saudade, lembranças, memórias e outros sentimentos afins. A cidade inicia a caminhada para reparação, tendo foco no meio de subsistência do município, buscando formas de economia sustentável para que a mineração não seja a única e exclusiva fonte.

A empresa teve que reconhecer sua política de "necroeconomia" e, ao rever suas práticas, passou a desenvolver novas normas e condutas, tendo como práxis o zelo e a garantia da integridade dos seus trabalhadores. Em função das perdas geradas, teve que mudar seu processo de trabalho levando sempre em conta a valorização da vida, o respeito aos munícipes de toda região em que opera.

O Congresso Nacional sancionou novas leis para as barragens a montante, e as empresas tiveram até julho de 2019 para descomissionar todas existentes no país. Com a punição dos réus, a Justiça entra em uma nova estação. Nesse novo ciclo, temos uma nova ordem social, em que o princípio básico é fazer valer o respeito, a cidadania, a preservação da vida e a igualdade social. A Justiça faz o seu papel, com ética, agilidade, e isso abala tragicamente o modus operandi das empresas de mineração no país.

Fica posto que a tolerância é zero para empresas que não seguem as regras de segurança. Fica estabelecido que há um novo pressuposto: todas as fraudes cometidas passam a sofrer sérias sanções judiciais, não importando o tamanho da empresa ou seu capital. O que vale é a vida, a lei é para todos.

Quando a Justiça impera, ocorre um efeito cascata. Se uma das empresas mais cobiçadas pelos investidores foi punida, todos serão. Então, a Justiça cumpre também um papel pedagógico nas relações entre Estado, empresas/empresários e sociedade civil.

Com a execução da Justiça em Brumadinho, outros casos que se delongavam foram julgados, e as sentenças cumpridas. Detalhe, todas essas ilegalidades foram julgadas como crimes hediondos, sem suspensão ou redução de pena. Tanto os crimes cometidos em na Boate Kiss e Mariana, citando aqui um dos mais conhecidos, tiveram julgamento ímpar, encerrando assim um longo capítulo na história da injustiça.

Continuando aqui o exercício de imaginação, neste ano de 2020, Ministério Público Federal e Defensoria Pública têm impetrado ações no sentido de garantir direitos e responsabilizar judicialmente a empresa responsável pelos impactos causados na região de Alagoas. Tendo todo cuidado técnico de não haver violações de direitos daqueles atingidos pela extração de sal-gema da empresa Braskem.

O reflexo da justiça feita em Brumadinho é expandido em todo território nacional. A cultura da impunidade vem abaixo, e uma rede de pessoas, tanto na esfera jurídica quanto nas outras autarquias, trabalha para que o direito à vida, ao trabalho e à dignidade sejam garantidos e exercidos conforme determinam as leis.

Estou delirando demais?!! Acredito que não. Talvez, na cronologia do tempo. Esperar por Justiça não pode ser loucura, mas também não pode ser eterno. O tempo, nesse caso, pode ser o detonador de outras barbáries. Loucura é matar e crer que não vai ser punido. O delírio, aqui, nos coloca num lugar seguro, cria abas de proteção para que nossa esperança se sustente. Todo esse devaneio foi para expressar nossa fé de que vamos ver a Justiça triunfar.

O ciclo de cinco anos é muito tempo e provoca um aumento expressivo nas dores e nas tristezas, nos leva à exaustão. Vemos nossa vida escorrer pelo ralo da impunidade. É adoecedor, mas não vou aqui me ater ao adoecimento.

O delírio, aqui, é tão somente para vislumbrar a justiça que tarda, mas não vai falhar. É dever nosso deixar que a justiça seja executada por aqueles que são legitimados para tal. É obrigação dos magistrados trabalhar e garantir a execução das penalidades. O direito deve ser exercido em nome da sociedade e da cidadania.

Não vamos desistir. Mas o tempo não corre a nosso favor. Então, nesse delírio, vamos nos nutrindo de fé e esperança. Na história do rompimento da barragem da Vale, nós gostaríamos e esperamos ficar marcados pela justiça não pelo crime. Justiça já.

 

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postado em 25/01/2024 06:00
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