Samba

O dia em que o samba foi enquadrado

Sentenciado a deixar o Brasil, conseguiu asilo em um país distante. Por lá, transitou, ensinou, ajuntou gente, contou sobre a própria história e seu povo, espalhou malemolência

PRI-1301-OPINI -  (crédito: Maurenilson Freire)
PRI-1301-OPINI - (crédito: Maurenilson Freire)

» Marcelo Café, cantor, compositor, ativista cultural e ceilandense

 

Suspeito, muito suspeito. Roupas coloridas demais para o padrão de nossa sociedade. "Fazendo arruaça, juntando gente, cantando, esbanjando felicidade, hein? Não duvido que tenha uma boquinha, né vagabundo? Qual é o seu nome, rapaz?". "Meu nome é Samba, doutor delegado."

O delegado olha desconfiado, coça o queixo, faz cara de poucos amigos e cheio de ironia diz: "Samba, Samba, Samba! Que nome mais esquisito! Poderia ser Joaquim, Manoel, João, José... Nomes que lembram a nossa grandiosa cultura herdada pelos portugueses. Mas acho que seria impossível. Com essa corzinha, você não teria esse nome, não é mesmo?" Todos na delegacia riem alto. Samba faz uma cara de quem não entendeu bem.

O que teria a ver a cor dele com o nome? E por que um nome português o faria melhor ou diferente de outra pessoa? Fica intrigado, não querendo acreditar que o estão interrogando por conta da roupa, pelo nome, pela alegria e, mais, por conta da cor da própria pele. O soldado Pires, o mais puxa-saco entre os auxiliares do delegado, como todo puxa-saco, ainda procura reforçar a fala do patrão, com o que ainda chamaríamos de preconceito: "Ora, chefe, e ele lá sabe onde é Portugal?". "Mas claro que sei, inclusive...". "Cale-se!", diz o delegado, "por um acaso lhe dei permissão de falar? Me diga, de onde você vem?". "Eu vim de África, na verdade estou aqui há muito tempo. Cheguei com uma gente bastante antiga, era criança. Com essa gente, vieram saberes, cantigas, muitas rezas e mandingas", respondeu Samba. "Para mim, tudo isso que você falou é coisa de gente que não acredita em Deus", diz o delegado. "Credo em cruz!", dizem alguns auxiliares, fazendo o sinal da cruz. "E onde fica esse país África?", pergunta o delegado, abrindo um atlas e, com o dedo indicador, percorrendo o continente europeu.

Samba, observando o equívoco, levanta-se da cadeira e, com toda mandinga herdada dos ancestrais, diz: "Creio que os senhores estão enganados! Talvez, se olhassem mais à direita, veriam um grande continente, composto por diversos países. Ah, senhores, África não é um país, mas, sim, lugar de grandes reinos. Os senhores sabiam que lá se inventou a escrita? E as famosas pirâmides, sabiam que ficam em África? Ah, e ainda tem o papel, a cerveja, a engenharia, a filosofia, a matemática e a escrita, que nasceram nesse lugar de pessoas da pele como a minha".

Um silêncio ensurdecedor cai sobre a sala. Delegado e agentes se entreolham. Gargalham alto, tanto para zombarem de Samba, quanto para esconderem a própria ignorância. "Ora, ora, ser delegado tem desses dias de diversão. Pois, onde já se viu, reinos em África? Reinos existem na Inglaterra, em Portugal, na Suécia, nas grandes nações. O senhor...o senhor não passa de um contador de histórias. Só me falta dizer que... que, com essa sua gente que veio pra cá, construíram o Brasil. Ora vejam…". "Pois sim, senhor! Eu e meus familiares construímos este país. E temos muito orgulho de nossa contribuição a esta nação!", disse Samba.

"Estou vendo que o senhor não é apenas contador de história. É um subversivo. E, como subversivo, não pode estar insuflando a imaginação das pessoas!" Samba foi preso, enquadrado como perigoso, subversivo e espião de alta periculosidade, que estava em terras brasileiras para desestabilizar o poder estabelecido. Com roupas coloridas, sorriso fácil, juntando as pessoas, contando histórias de um povo que por aqui chegou, vindo de longe, de uma terra onde reis e rainhas eram pretos e pretas, como ele, e causaram perturbação nas autoridades.

Nessa época, as verdades eram fabricadas, e contrariar verdades absolutas trazia problemas. Da mesma maneira, já tinha acontecido com outras pessoas vindas do mesmo continente que Samba, uma moça muito sabida chamada Capoeira e outro rapaz bastante imponente chamado Candomblé. Eles foram acusados de vadiagem, heresia e proibidos de voltar ao Brasil. Com Samba não foi diferente. Sentenciado a deixar o Brasil, conseguiu asilo em um país distante. Por lá, transitou, ensinou, ajuntou gente, contou sobre a própria história e seu povo, espalhou malemolência por onde passou. Nesse tempo, ele ganhou outro nome, Bossa Nova.

 

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postado em 13/01/2024 06:05
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