8 de janeiro

Nossa maior joia

Uma sociedade que almeja o progresso e a paz não pode cortejar o passado. Muito menos desejar o retorno do militarismo ao poder como antídoto ao ódio contra determinado candidato ou partido

Edifício sede do Supremo Tribunal Federal (STF), após os atos de vandalismo do dia 8 de janeiro. -  (crédito: Fellipe Sampaio /SCO/STF)
Edifício sede do Supremo Tribunal Federal (STF), após os atos de vandalismo do dia 8 de janeiro. - (crédito: Fellipe Sampaio /SCO/STF)

Eu era apenas uma criança, tinha entre oito e nove anos, mas me lembro muito bem da fome de democracia que assolava os corações dos brasileiros. Depois de anos de chumbo, meus pais me levaram para um comício na Praça Cívica, no coração de Goiânia, minha cidade natal. Eu me recordo da voz de Ulysses Guimarães, da multidão gritando a plenos pulmões, do Hino Nacional entoado com esperança. O clima que antecedeu as Diretas Já era semelhante ao de Copa do Mundo. Havia um sentimento de irmandade no ar. Todos juntos, imbuídos de um mesmo propósito. Também me lembro do dia em que Tancredo Neves foi eleito; da hospitalização; da morte anunciada pelo porta-voz Antônio Britto, em 21 de abril de 1985; da música Coração de Estudante, de Milton Nascimento, tocada durante o velório do presidente eleito. Cheguei a enviar um poema de minha autoria para a viúva Risoleta Neves, poucos dias depois do falecimento do marido. Qual foi minha surpresa, um menino de 9 anos, ao receber uma carta de agradecimento, semanas depois, com a assinatura em punho de Risoleta.

Todas essas memórias me marcaram muito. Percebi, ainda que na minha inocência de criança, como a democracia é valiosa. Como precisamos cuidar dela, preservá-la, acarinhá-la e entendê-la como sinônimo de liberdade. E como a nossa Constituição deve ser a força motriz de uma sociedade civilizada e avessa à desordem e ao caos. Naquele 8 de janeiro de 2023, eu estava de plantão na redação do Correio Braziliense. Acompanhei, atônito e incrédulo, a massa furiosa tomando de assalto as sedes dos três Poderes em Brasília. O barulho constante de helicópteros e a sirene das viaturas da policía deixavam claro que aquele seria um dia para entrar na história. Uma data sombria para o Brasil, mas, também, um teste decisivo de resistência da democracia.

Na última segunda-feira, um ano depois, saí da redação pouco antes das 21h e fui até a Praça dos Três Poderes. As duas torres do Congresso recebiam projeções com a palavra "Democracia" e a capa da Constituição impressa. O Supremo Tribunal Federal estava todo iluminado de verde e parecia uma joia de esmeralda levitando na escuridão; o Planalto se destacava com as cores verde e amarela. Ao chegar em casa, assisti ao documentário produzido por Julia Duailibi e Rafael Norton. Um registro histórico estupendo e de alto valor, que pode servir de alerta para as próximas gerações. Percebi como tivemos sorte pelo fato de a ruptura constitucional não ter se concretizado. Ou correríamos o risco de voltar ao calabouço da ditadura, ao pau de arara, aos desaparecimentos forçados e ao exílio.

Uma sociedade que almeja o progresso e a paz não pode cortejar o passado. Muito menos desejar o retorno do militarismo ao poder como antídoto ao ódio contra determinado candidato ou partido. Se o plano tivesse sido bem-sucedido em 8 de janeiro de 2023, muito provavelmente aqueles que imploraram pela conspiração para anular as eleições estariam saudosos da democracia, presos à mordaça da ditadura. Não poderiam nem mesmo protestar pelo fim do eventual regime militar. As autoridades brasileiras têm o dever de punir de forma exemplar todos os atores da trama golpista: ideólogos, incentivadores, financiadores e executores. Não pode ficar pedra sobre pedra. Questão de justiça, de apreço pela democracia, de civilidade e de bom senso.

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postado em 10/01/2024 06:00
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