LAERTE RIMOLI, jornalista
Tenho 63 anos, muito bem-vividos. Ainda lembro do trinar do passarinho que trouxe a primeira semente de Cambuí para a terra em que nasci e floresci. Essa árvore que me pinta de amarelo todo dezembro tem a companhia da Sibipiruna. Juntas, rivalizam com os ipês que reinam no auge da seca. Vieram das Minas Gerais. Mesmo lugar onde nasceu JK, o homem que me tirou do papel. Me transformou em gente. Lembro dele nas serestas, pelo riso fácil e por uma palavra que nos marcou: esperança. Taí, seria um bom nome para mim. Bobagem, adoro a sonoridade do meu. A liberdade com que fui criada se manifesta em cada canto do quadradinho que me abriga.
Nasci da ruptura. E, mesmo assim, sou ternura. O Brasil precisava avançar para o Oeste, desabitado. Minha amiga Rio de Janeiro, linda, incomparável, cedeu de má vontade o posto que hoje ocupo. Somos o exato oposto. Vim ao mundo num descampado, no Planalto Central, a mil metros do nível do mar. O Rio se debruça no oceano, é litoral. Minhas águas, nascidas no pequeno Rio Paranoá, foram transformadas em lago. O clima é seco por aqui, mas minh'alma é ancha. Sou fruto do caldeamento de raças, sou diversa. Os candangos que me deram forma vieram de toda parte: Norte, Nordeste, Sul, Sudeste. Mas meu gene é marcadamente mineiro. Meu bioma é o Cerrado. Foi em Jataí, aqui no vizinho Goiás, em 1955, que Toniquinho cobrou de JK a promessa que me tornou realidade. E materializou o sonho de Dom Bosco: uma nova civilização.
Acusam-me de não ter esquinas, coisa de quem não me conhece. Dizem que sou fria. Puro engano, adoro aglomeração. Promovo encontros em amplos gramados Só não me peçam para imitar as outras. Sou original. Preciso de ar puro, não suporto buzinas ou odores típicos das metrópoles. Minha composição física é plena de tesourinhas, grandes vãos e, vá lá, de concreto. Tenho o maior orgulho das faixas que cortam minhas veias. Honram o nome: "faixas de pedestre", protegem o ser humano comum.
Ao mirar o alto, me deparo com o azul profundo do céu do Cerrado, uma de minhas marcas registradas. Nas entrequadras que me tecem, grandes guarda-chuvas verdes permitem um passeio agradável, entremeado de raios de luz. As mudas de Burle Marx se tornaram imensas copas. Aqui cabe um agradecimento público ao botânico Ozanan Coelho. Durante 40 anos, o Departamento de Parques e Jardins, que comandou com leveza e doçura, tratou de suavizar o concreto aparente dos meus primeiros anos. Agora, as flores se alternam. Variadas espécies trocam de cor. Espatodias, buganvilles, ipês, flamboyants, cambuis.
Parques, cachoeiras, vales, pequizeiros, cajuzinho silvestre, prosa de vários sotaques, manga, jaca, jaboticaba, amora e abacate em abundância e ao alcance das mãos nas minhas entranhas e ao redor. Gosto de ver o espanto das pessoas que visitam o Palácio do Itamaraty, no centro do meu corpo. Ali, o Brasil se explica. A genialidade de Niemeyer, que me traçou, se manifesta. A escada interna, em caracol, nos leva ao infinito e abre a visão do prédio da Justiça, igualmente belo, através de generosas janelas. Um verdadeiro espetáculo.
Frequento rodas de samba, que herdei dos cariocas; criei bandas de rock, que passeiam no imaginário brasileiro; exporto gente que, no meu convívio, aprendeu o que é amplitude. Venham me conhecer. Pastel na Rodoviária, sabores diversos na feirinha do Kituart, comidas da Amazônia. O Clube do Choro, a Escola de Música, o pôr do sol no Pontão. Passeios de barco no Lago Paranoá. Dispam-se de preconceitos. O poder que adquiri não me conspurca. Não me culpem pelo mau uso dele. Aceitem o novo. Eu sou o coração do Brasil, pulsante, irriquieto. Profusão de cores e sabores. Estética única. Sempre disposta a incorporar novas influências. Com uma pitada de arrogância: sou monumental, nem por isso menos humana. Muito prazer, eu sou Brasília.
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