Consumo

Artigo: Nas pesquisas de marca, brasileiros são os outros

Levantamentos espelham o que as pessoas dizem, mas não o que elas, de fato, sentem

Consumidores lotaram os corredores dos shopping centers do Distrito Federal -  (crédito:  Ed Alves/CB/DA.Press)
Consumidores lotaram os corredores dos shopping centers do Distrito Federal - (crédito: Ed Alves/CB/DA.Press)
postado em 01/01/2024 06:01 / atualizado em 02/01/2024 15:37

Estudos e pesquisas de mercado têm levado os tomadores de decisões e a população em geral, à medida que ganham visibilidade, a uma armadilha. São levantamentos que espelham o que as pessoas dizem, mas não o que elas, de fato, sentem. Por isso, o que é divulgado na mídia como realidade acaba por sugerir uma visão equivocada do que nós brasileiros pensamos sobre nós mesmos. E os motivos são diversos: seja por não entendermos nossa "engenharia interna", seja por vergonha de não sermos politicamente corretos ou simplesmente pelo desejo de negar evidências de nossas falhas.

Vi um exemplo disso em novembro último. Fiquei muito surpreso com a indicação de uma pesquisa de que mais da metade dos entrevistados disse não comprar produtos de organizações que não investem em sustentabilidade e que ameaçam o nosso planeta. Uma intenção muito civilizada, mas que está muito longe de se traduzir em comportamento no consumidor brasileiro.

E mais: nesse mesmo levantamento, quase dois terços das pessoas dizem ir em busca de marcas que têm demonstrado autenticamente compromissos com a cultura ESG (sigla em inglês para ações ambientais, sociais e de governança). Como se tivessem alguma consciência plena do que essas três letras representam. Pesquisas que li recentemente dizem também que as pessoas pautam seu comportamento de compra criteriosamente, evitando empresas envolvidas em greenwashing — ou seja: discurso ambiental sem efeito prático. O que é um retrato invertido de quem ainda somos e do que fazemos.

Ao ler os resultados, senti como se estivesse na Alemanha ou na Escandinávia, não aqui no Brasil. Na verdade, porém, o que acontece é que os entrevistados se escondem atrás de álibis e respostas politicamente corretas. Quem cai nessas armadilhas capta apenas a superfície das coisas. É uma questão de organização e planejamento da pesquisa.

Gosto muito de uma comparação, que já me pediram para não fazer mais, porque não é de bom tom. Porém não resisto, ela é muito explicativa nesse caso. Quando fazemos exames de urina, ouvimos sempre a mesma recomendação da enfermeira: despreze o primeiro jato. Pois bem, estudos precipitados e ingênuos que acreditam no "primeiro jato" de respostas — sem uma forma de questionar essas respostas mais adiante — não revelam a verdadeira natureza das pessoas.

Para testar essa ideia, conduzimos há algum tempo um estudo com centenas de entrevistas nas cidades de São Paulo e de Curitiba sobre hábitos de higiene. Vejam o que aconteceu: Pergunta: "Você fecha a torneira enquanto escova os dentes?" Resposta: 87% dizem que fecham. Pergunta: "Você reutiliza a água da máquina de lavar roupas para outros fins?" Resposta: 65% dizem reutilizar. Pergunta: "Você apaga as luzes quando não está no ambiente?" Resposta: 88% dizem que sim.

Lendo essas respostas, não me senti nem um pouco brasileiro. Acho que brasileiros são os outros. Como seriam fantásticos e promissores esses resultados se fossem a expressão do que as pessoas realmente fazem. Menos consumo de luz e de água, algo muito positivo. No entanto, experimente perguntar a essas mesmas pessoas o que elas acham que os brasileiros em geral fazem. Fecham a torneira? Reutilizam a água? Apagam as luzes? Os resultados se invertem.

Um estudo muito interessante do Ipec sobre racismo, publicado no Estadão em julho de 2023, escapou da armadilha. Ele constatou que 81% dos entrevistados afirmam que vivemos em um país racista. Mas quem são as pessoas racistas? Somente os 11% admitem que têm atitudes e práticas racistas. A equação não fecha: num país racista para 81% da população, somente 11% têm atitudes e comportamentos dessa natureza.

O Ipec matou a charada. Mostraram a diferença abismal entre o que se diz ser e o que realmente se é. De um lado, as declarações movidas apenas por boas intenções e recatos politicamente corretos (81%). Do outro, a confissão talvez até envergonhada de alguns poucos entrevistados sinceros (11%).

Enquanto não fugirmos dessas armadilhas metodológicas não seremos capazes de nos enxergar de verdade, com todas nossas imperfeições, convivendo apenas com os sublimes sonhos, desejos e o espelho de primeiro mundo. É a hora de as pesquisas, de uma vez por todas, seguirem Cazuza e proporem que o Brasil mostre sua cara.

*Jaime Troian, Engenheiro, sociólogo e diretor da TroianoBranding


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