MEIO AMBIENTE

Combater o desmatamento no Cerrado requer um esforço global

Para o bioma mais ameaçado pelo avanço descontrolado da produção de commodities para exportação no Brasil, o cenário é desalentador.

A edição da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças do Clima (COP28), que se encerrou em Dubai este mês, convocou os países a uma transição para longe dos combustíveis fósseis de uma maneira justa, ordenada e equitativa. Apesar da linguagem atender mais às reivindicações do mercado, do que demonstrar efetiva preocupação com a conservação da biodiversidade e justiça climática, não deixa de ser um marco histórico, com a definição das regras de operacionalização do fundo de perdas e danos para apoio aos países mais vulneráveis, e o reconhecimento de que qualquer caminho para alcançar plenamente os objetivos do Acordo de Paris deve incluir a agricultura e os sistemas alimentares.

O mundo dos negócios segue como de costume, sem responder à altura de suas implicações e responsabilidades. Para o bioma mais ameaçado pelo avanço descontrolado da produção de commodities para exportação no Brasil, o cenário é desalentador. Os dados mais recentes do Prodes (medidos de agosto/2022 a julho/2023), pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), registraram 11 mil km² de área devastada no Cerrado. E os alertas de desmatamento do Deter vêm batendo recorde após recorde, tendo disparado 238% em novembro, em comparação ao mesmo período do ano passado.

A tendência é crítica. Atualmente, mesmo que o Brasil cumpra seu compromisso de combater o desmatamento ilegal, as fazendas e setores econômicos ainda podem suprimir legalmente 32 milhões de hectares de vegetação nativa até 2050. Metade disso é de vegetação do Cerrado. O número, recentemente divulgado, foi calculado por uma equipe de pesquisadores coordenada pela Nature Based Solutions Initiative, da Universidade de Oxford, a partir de um cenário de implementação total do Código Florestal.

Ampliar a ambição de conservação de biomas não florestais depende essencialmente de acordos e normativas internacionais que proíbam a comercialização de commodities associadas ao desmatamento. O recente compromisso de oito das maiores empresas de comércio e processamento de produtos agrícolas do mundo, com um roteiro de ação para travar a desflorestação, adota uma data-limite de tolerância até 2030 para seguir com a conversão de vegetação nativa primária em biomas não florestais. No ritmo atual de destruição, tudo indica que, até lá, se ultrapasse a capacidade de suporte para os serviços ecossistêmicos essenciais providos pelo Cerrado.

Um caminho mais assertivo para aumentar a conservação da vegetação nativa nas áreas privadas pode ser a ampliação de escopo e efetiva implementação do Regulamento da União Europeia sobre Produtos Livres de Desmatamento (EUDR). Aprovado há pouco mais de um ano para a proteção de florestas, o mecanismo proíbe a entrada no mercado europeu de produtos com origem em áreas desflorestadas após 31 de dezembro de 2020. Uma avaliação de impacto em outras áreas arborizadas ("other wooded lands") pode levar os políticos europeus a decidir incluir os biomas não florestais na área de abrangência da normativa. Isso é imperativo para alcançar a redução do dano climático das emissões de carbono associadas ao consumo doméstico europeu.

A iniciativa de transparência de dados das cadeias produtivas Trase registra que as emissões brutas de CO² associadas à exposição, à desflorestação e à conversão, incluindo a biomassa acima e abaixo do solo e os resíduos, decorrentes da exportação de soja para a União Europeia, somaram 3.341,700 toneladas de CO², em 2020. E, embora tenha diminuído em anos recentes, 20.408 ha de soja exportados para o mercado europeu, em 2022, estavam expostos à desflorestação e conversão do Cerrado.

A imposição de normas para o consumo de commodities livres de desmatamento exerce pressão de mercado sobre produtores, incentivando a adoção de práticas sustentáveis, aumentando a transparência, a rastreabilidade e regularidade das cadeias de suprimentos. Pressões exteriores podem encontrar resistência dos setores produtivos implicados. Todavia, servem também para incentivar o governo brasileiro e o setor privado a ampliar, aplicar e fortalecer as regulamentações ambientais nacionais que defendam os serviços ecossistêmicos prestados pelo Cerrado e seus povos e comunidades tradicionais, para provisão de água, energia e alimentos.

Combater o desmatamento no Cerrado requer um esforço global. A cooperação internacional entre governos, empresas e consumidores é essencial para enfrentar os desafios complexos associados à desflorestação e à conversão de vegetação nativa impulsionada por commodities, a exemplo da soja e carne bovina. A proteção do Cerrado é uma responsabilidade compartilhada que exige ações coordenadas e comprometidas. É tempo dos compromissos globais climáticos e de conservação da biodiversidade, mais do que servirem para manter os negócios como sempre, induzirem transformações efetivas nos modelos de produção centrados no consumo de combustíveis fósseis e na degradação da natureza.

*Guilherme Eidt Gonçalves de Almeida é Coordenador de Políticas Públicas e advocacy do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN).

*Raisa Pina é Doutoranda em antropologia pela Universidade de Brasília (UnB)

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