Dezembro de 2023. Tempo de balanço e planejamento para que a saúde avance no próximo ano. Atrasos na oferta de tecnologias têm afetado a saúde de milhares de brasileiros. Isso precisa acabar. Quando o governo decide que um medicamento será fornecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS), as áreas técnicas do Ministério da Saúde devem adotar providências para que a oferta da tecnologia aconteça em 180 dias, contados da data de publicação da decisão.
A regra está prevista em um decreto presidencial, mas não é cumprida na maioria das vezes. Esses atrasos frequentes são monitorados pela organização não governamental Crônicos do Dia a Dia (CDD), por meio de uma ferramenta de tecnologia chamada Incorporômetro.
Alguns medicamentos para hemofilia são bons exemplos do que se apresenta neste artigo. A edição recente do webinar Saúde na Roda, promovido pela Associação Crônicos do Dia a Dia (CDD), tratou do tema. Um dos destaques do evento foi o atraso na oferta de dois medicamentos indicados para o tratamento de hemofilia A que pertencem à classe dos chamados fatores VIII recombinantes de longa duração.
Em fevereiro de 2022, os pacientes e a comunidade científica celebraram a introdução dessas tecnologias no SUS. Infelizmente, são medicamentos que deveriam estar disponíveis há mais de 485 dias, mas que ainda não chegaram.
A hemofilia A é uma doença de origem genética, que atinge mais de 11 mil brasileiros. Caracteriza-se por sangramentos prolongados causados por deficiência ou diminuição da atividade de uma proteína essencial: o fator VIII de coagulação. A patologia se manifesta em diferentes graus e pode levar à incapacidade. A forma grave, quando não tratada adequadamente, provoca sangramentos espontâneos, internos e externos, inchaços, dores nas articulações ou nos músculos e limitação de movimentos.
Com a quarta maior população de pacientes hemofílicos do mundo, o Brasil é referência no enfrentamento da patologia: o SUS oferece medicamentos da classe dos fatores VIII recombinantes para os pacientes com hemofilia A. Contudo, o atraso na oferta de medicamentos mais modernos, da classe dos chamados fatores VIII recombinantes de longa duração, impede que os pacientes tenham acesso a benefícios adicionais importantes, como maior facilidade de manejo — o que garante maior adesão ao tratamento —, maior controle das hemorragias e menos sequelas. É, portanto, um atraso que compromete a qualidade de vida dos pacientes. Mas por que existe esse atraso?
De maneira geral, o atraso na oferta de medicamentos incorporados está relacionado a problemas estruturais e providências burocráticas. Mas, no caso dos medicamentos da classe dos fatores VIII recombinantes de longa duração, existem peculiaridades. A própria decisão de incorporação dos medicamentos criou uma condição específica, relacionada à vigência de uma Parceria para o Desenvolvimento Produtivo (PDP), mantida entre a Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia (Hemobrás) e um laboratório privado.
O objetivo dessa PDP era propiciar a transferência da tecnologia de produção do fator VIII recombinante para a Hemobrás — o que é, de fato, fundamental para a implementação de uma política de acesso baseada na autonomia tecnológica e na autossuficiência produtiva.
A condição imposta pelo Ministério da Saúde expressava o receio de que a aquisição e a oferta de medicamentos da classe dos fatores VIIII recombinantes de longa duração pudesse frustrar a implementação da PDP e comprometer o processo de transferência de tecnologia pela Hemobrás. Na prática, porém, a vigência da PDP impediu que os pacientes tivessem acesso a tecnologias mais modernas, que propiciam benefícios significativos e melhor qualidade de vida.
A Associação Crônicos do Dia a Dia reconhece a importância das PDPs para a construção do Complexo Econômico Industrial da Saúde, mas considera que a implementação da política não deve comprometer o acesso a tecnologias incorporadas ao SUS que foram objeto de avaliações rigorosas de eficácia, custo/efetividade e impacto orçamentário. Uma coisa não pode atrapalhar a outra.
Aliás, é importante dizer que a PDP terminou em agosto deste ano, e que os pacientes ainda não receberam os medicamentos, o que significa que existem outros entraves que merecem a atenção urgente do Ministério da Saúde. Esperamos que o próximo ano seja marcado por mudanças importantes na política de acesso a tecnologias, e que o governo expresse, de fato, um compromisso mais efetivo com o cumprimento do prazo de 180 dias.
* Paulo Benevento é advogado sanitarista e coordenador de advocacy da Associação Crônicos do Dia a Dia (CDD)