Natal

Artigo: Saudades de quê?

Que, neste Natal, cada um celebre do jeito que lhe agrade. Mas, principalmente, que o mundo comece a enfrentar seus problemas, garantindo um futuro suficientemente bom

As festividades natalinas como se conhecem hoje são bem mais recentes que o homenageado desta data, simbolicamente apontada como o nascimento de Jesus. É verdade que, desde a cristianização romana, ela é comemorada. Mas foi somente no século 19 que o Natal moldou-se no formato atual, com o pacote completo: pinheiro, papai Noel, troca de cartões, presentes sob a árvore e uma farta ceia.

Foi o casal real Victoria e Albert (tataravós de Elizabeth II) quem popularizou esse modelo de celebração. Do marido alemão, a rainha inglesa tomou emprestado o hábito de levar para dentro de casa um pinheiro e decorá-lo com enfeites e velas. No começo, trocavam-se lembranças, como bengalinhas doces, mas, com a atividade industrial em pleno vapor, bonecas, trenzinhos, soldados e afins passaram a ser distribuídos para as crianças. Também foi a realeza que instituiu o hábito de enviar cartões, primeiro confeccionados artesanalmente, depois produzidos às centenas nas gráficas britânicas.

Outra inovação de Victoria e Albert foi adicionar ao Natal o significado familiar. Além de festa cristã, a celebração tornou-se um momento de unir parentes e amigos ao redor da mesa. A imagem arquetípica da festa formou-se e se consolidou além do Hemisfério Norte.

Filmes, livros e, mais recentemente, redes sociais fazem referência à festividade à moda vitoriana. No Instagram, perfis natalinos publicam fotos e ilustrações de casas ricamente decoradas, repletas de presentes, com famílias bem vestidas e aquecidas, comendo a rica ceia, enquanto, lá fora, a neve cai sobre a cabeça dos coralistas. São muito frequentes os comentários nostálgicos: "Como eu adoraria ter nascido nessa época", "Queria me transportar para o século 19".

Essas pessoas que almejam uma máquina do tempo, porém, talvez desconheçam como era viver na época da rainha Vitória. Provavelmente, boa parte delas dividiria quartos com outras 30, trabalharia 14 horas por dia para pagar o aluguel em favelas sem qualquer saneamento, morreria de cólera ou outras doenças infecciosas e, com muita sorte, seria recolhida no fim da vida em instituições que não passavam de depósitos de miseráveis.

A classe média praticamente não existia: ou se era extremamente rico, rico, pobre ou miserável. Vinte e cinco por cento da população da Inglaterra estava abaixo da linha da subsistência, o que, hoje, o Banco Mundial chama de pobreza absoluta. Na Bavária, de onde foi importada a tradição do pinheiro, 50% das crianças morriam antes dos 15 anos.

Na Inglaterra vitoriana das incríveis máquinas modernas, crianças, às vezes com 4 anos, já eram operárias, fabricando brinquedos aos quais não teriam acesso. Ou então se arriscavam limpando a chaminé das lareiras que aqueciam e davam aconchego às casas dos ricos. Globalmente, mulheres e trabalhadores não tinham direitos; na parte sul do mapa, povos eram subjugados e escravizados pelo colonizador europeu.

Hoje, o mundo está longe de parecer um cartão-postal vitoriano. Desigualdade, violência, guerras, aquecimento global… A lista de mazelas é longa. Porém, se não faz sentido condenar o passado — que, sem dúvidas, foi responsável pelas benesses de hoje —, menos ainda se deveria idealizar tempos que, para a maioria da humanidade, foram terríveis.

Que, neste Natal, cada um celebre do jeito que lhe agrade: à moda vitoriana, tropical ou simplesmente descansando. Mas, principalmente, que o mundo comece a enfrentar seus problemas, garantindo um futuro suficientemente bom, a ponto de ninguém desejar voltar no tempo.

Mais Lidas