Em fevereiro deste ano, 48 pessoas perderam a vida em mais um deslizamento de terras — dessa vez, no estado de São Paulo. No Brasil, o racismo ambiental estrutura a falta de recursos, de saneamento e outros serviços básicos. Sabemos que a maioria das pessoas que residem em áreas de risco é negra — reflexo de injustiça social e segregação que marcam territórios. Muitas famílias, por falta de oportunidades, acesso à terra e trabalho, sem direito à moradia digna, constroem suas casas em lugares de risco, na falta de outras escolhas. Sustentar uma família com salário mínimo pode tornar impossível realizar o sonho da casa própria.
Fatores étnicos-raciais imbricados e interconectados com a exclusão, o racismo e as desigualdades podem gerar mortes que poderiam ser evitadas. A população preta é afetada de forma direta pela desigualdade ambiental, pelo racismo estrutural, pelo desemprego, e acaba por ser jogada em espaços de apartação social, sem condições sanitárias, infraestrutura, acesso precário à água encanada e ao esgotamento sanitário. Como as favelas, que, em sua maioria, nascem em encostas, não por escolha, mas por exclusão.
Esse ambiente muitas vezes insalubre é o cenário que provoca mortes anunciadas que se repetem todos os anos, situação em que precisamos buscar soluções e mudanças. Há um marcador social que indica onde essa população deve estar, e é, majoritariamente, nesses ambientes de risco e exclusão. São padrões repetidos, e parte da sociedade finge não ver que a população preta está em ambientes totalmente degradados, correndo riscos de inundações e deslizamentos.
São incidentes que levam suas vidas e suas histórias, em um processo que afeta as famílias, até mesmo em sua saúde mental, já que, sem alternativas de moradias e tendo consciência dos desastres, essas pessoas são obrigadas a conviver, sempre que chove, com o medo e a angústia de perderem tudo, inclusive a vida.
O racismo ambiental estrutura essas mortes, afetando grupos vulneráveis em uma necropolítica que vai ocupando de forma silenciosa, provocando injustiça social, se manifestando como uma reprodução desigual de violações de direitos que se sustentam por meio da invisibilização da população preta, impactando de forma cruel e perversa a vida das pessoas. Esse impacto é, sim, produzido. Culpar o clima e o meio ambiente é terceirizar a culpa e fechar os olhos para as questões sociais e raciais que retroalimentam as desigualdades e exclusão.
As tragédias nas épocas das chuvas fazem parte de uma estrutura que se sustenta através do racismo, atingindo a população preta, apagando suas histórias, eliminando não só suas vidas, como deixando um rastro de destruição e desamparo sobre quem sobrevive. São tragédias que atingem mais agudamente uma população vulnerável, e essa população tem cor.
Existe uma estrutura racista e excludente que sustenta essas mortes, o dinheiro, o poder, as questões imobiliárias, o descaso pela população pobre e preta. Desde as leis da terra de 1850 que a população negra não tem direito a terra e trabalho, o que reverbera até hoje, causando danos e gerando cada vez mais desigualdades e exclusão. Esses processos históricos nos fazem refletir sobre essas relações desiguais, que geram mortes, despersonalização e dor.
Proporcionar a essas famílias moradias dignas e seguras é um dever do Estado. Precisamos de políticas públicas transversais e interseccionais que contemplem a população preta, que combata o racismo ambiental e todas as formas de opressão. Há uma negação de estrutura de direitos, e o racismo é uma das ideologias que sustentam essa lógica. E quando chove, na maioria das vezes, são as casas dos negros que desabam, são os seus corpos tombados no chão entre os escombros, são crianças que perdem o direito de crescer. O racismo ambiental estrutura essa perda coletiva, e que faz com que se perca até a esperança. São várias forças contrárias em uma luta desigual. Temos uma certeza: a culpa não é da chuva!
* Neusa Maria é psicóloga especialista em saúde mental, coautora do projeto Eu me Projeto e membra consultora da Comissão de Igualdade Racial OAB/DF