A morte do histórico e controverso ex-secretário de Estado norte-americano Henry Kissinger, aos 100 anos, na quarta-feira, é simbólica também para o esporte mais popular do mundo. Antes de virar o poderoso diplomata da segunda metade do século 20 nos governos de Richard Nixon e de Gerald Ford, ele foi goleiro e usou a paixão pela bola desde a infância, em Fürth, na Alemanha, para influenciar os presidentes da Fifa, João Havelange; da Uefa, Lennart Johansson; e até mesmo o Rei Pelé. Prova de que política e futebol se misturam, sim.
No livro Como eles roubaram o jogo, de David Yallop, suspeita-se de uma trama entre Kissinger e os ditadores da Argentina, Jorge Videla, e do Peru, Morales Bermudez, antes do jogo Argentina 6 x 0 Peru na Copa de 1978. O resultado eliminou o Brasil. Anfitriã, a Argentina marchou rumo ao título. Os EUA não hesitavam em apoiar governos autoritários de direita para combater a influência da extinta União Soviética na América Latina.
Filho de uma família judia, Heinz Alfred Kissinger nasceu em 1923. Cinquenta anos depois, ganhou o Nobel da Paz. Aos 15 anos, fugiu com os pais das perseguições nazistas rumo aos EUA. Abandonou as arquibancadas do Greuther Fürth, campeão alemão em 1914, 1926 e 1929. O time disputa a Série B da Bundesliga. Kissinger tornou-se ponte para a evolução do futebol nos EUA. Participou das tratativas para a Copa de 1994 e das candidaturas a sede de 2018 ou de 2022. Amargou derrotas para Rússia e Catar.
O maior triunfo de Kissinger na diplomacia da bola aconteceu em São Paulo. Veio ao Brasil e seduziu Pelé a defender o Cosmos nos EUA. O melhor jogador de todos os tempos conta os bastidores em uma entrevista à revista Esquire, em maio de 2016. "O senhor Kissinger veio a São Paulo, convidou-me para tomar café e acabou me convencendo a ajudar a promover o futebol", conta o Rei.
Kissinger gostava de filosofar. "Controlar a bola exige talento análogo ao do balé. Os brasileiros surpreendem com o virtuosismo e irresponsabilidade das habilidades pessoais. Por outro lado, por vezes ficam tão encantados com a arte individual que se esquecem de marcar gol e são superados por adversários mais concentrados e estrategicamente orientados", criticou na Newsweek. Dizia que o Brasil perdeu a Copa de 1982 por azar.
Em artigo de 1986 no Washington Post, antes da queda do Muro de Berlim, comentou o técnico Franz Beckenbauer. "A Alemanha joga futebol da mesma forma que seu Estado-Maior se preparou para a guerra. Jogos meticulosamente planejados. Cada jogador é habilidoso, tanto no ataque quanto na defesa. (...) Ao mesmo tempo, a seleção sofre da mesma deficiência do Plano Schlieffen, no qual se baseou a estratégia alemã na Primeira Guerra Mundial. Existe limite para a previsão humana. O estresse psicológico dos encarregados de executar manobras excessivamente complexas não pode ser calculado antecipadamente". Quando disserem "futebol e política não se misturam", lembre-se deste nome: Henry Kissinger.